segunda-feira, 29 de novembro de 2010

OS MEUS AMIGOS TAMBÉM NÂO ME OUVIRAM

Europeu da Semana
Como sobrevivi ao “boom” irlandês
24 novembro 2010 The Times Londres

"Home thoughts from abroad".

O escritor irlandês Julian Gough passou os anos do Tigre Celta com pouco mais do que amor e uma cabana. Agora a residir em Berlim, aqui fica a sua história sobre manter-se cético (e sem chavo), enquanto o resto do país enlouquecia (e rebentava) com a febre do imobiliário.

Julian Gough
Durante os anos de grande crescimento económico da Irlanda, dava imenso trabalho evitar ganhar dinheiro. Consegui controlar-me, transformando-me num escritor de ficção impopular. A minha namorada conseguiu-o tornando-se artista. Os nossos amigos faziam dinheiro; nós fazíamos arte. Tudo bem. Perfeito. Afinal, o dever sagrado do escritor irlandês é manter-se completamente dessincronizado da Irlanda.

Mas a seguir ao ano 2000, o crescimento genuíno transformou-se na bolha do imobiliário que tirou os pés das pessoas da terra. Em breve, The Irish Times tinha um suplemento sobre imobiliário mais grosso do que o jornal. Os meus amigos começaram a comprar casas cada vez mais caras. O endividamento alastrava e a Comunicação Social chamava-lhe prosperidade. David McWilliams, isolado entre os jornalistas financeiros irlandeses, analisou a situação com clareza. O economista Morgan Kelly escreveu um artigo espantoso, dissecando cada bolha de imobiliário da história. A Irlanda percorria cada passo, no vermelho. O país estava lixado. Disse-o a todos os meus amigos. Eu continuava a viver em Galway, no oeste, mas eles tinham-se mudado todos para o coração do Tigre Celta, Dublin.

Não quiseram dar-me ouvidos. Eu estava errado. Afinal, estavam cada vez mais ricos e eu mais pobre. Com a nação inteira embriagada, se se falava de uma bolha, a reação podia ser agressiva. Bertie Ahern, o primeiro-ministro irlandês daquele tempo, fez um discurso na televisão em que atacava pessoas como Kelly e McWilliams, por ficarem “sentados na linha lateral, resmungando e lamentando-se… Não percebo como as pessoas que entram nessa não cometem suicídio”. O público riu e aplaudiu.

Bancos irlandeses recomendavam duas hipotecas
Entretanto, os nossos amigos começaram a ter filhos e a mudar para casas maiores. Mas mantinham a anterior. Eu ficava abismado. Não existem duas regras de ouro em matéria de investimento: diversifique a sua carteira e não contraia empréstimos para especular? Mas os bancos irlandeses recomendavam agora ao comum dos trabalhadores que dobrassem as suas apostas, com duas enormes hipotecas.

Nesta altura, as conversas na Irlanda iam dar sempre às propriedades. As pessoas tiravam fins de semana para irem comprar apartamentos na Bulgária. Na montra do nosso vendedor local tinha apartamentos portugueses. Contudo, comigo, os meus amigos não falavam acerca de imobiliário e da bolha; ficavam irritados quando eu puxava o assunto. E deixámos de nos ver com frequência.

Uma pessoa começa a sentir-se como um passageiro das cabinas do porão do Titanic, que viu o icebergue rasgar o navio a todo o comprimento e entrou no salão de baile para avisar as pessoas… e todos continuaram a dançar, sendo gentilmente acompanhado à porta. Porque nesta altura, na Irlanda, se não se possuísse propriedades e não se estivesse a ganhar bom dinheiro, era-se gentinha do porão. Rendas, preços, consumo de cocaína… tudo andava numa efervescência. A minha namorada e eu ficámos esclarecidos, certa noite, no hotel do Bono, quando demos pelos nossos amigos a comprar garrafas de champanhe medíocre por 90 euros, como dantes compravam cervejas. Alguém disse: “Ah, no fim dividimos a conta”. Olhámos um para o outro. Com 10 euros nos bolsos, planeávamos fazer durar a nossa água tónica até ao fim da noite. Tínhamos a renda em atraso. Pedimos desculpa, demos-lhes os nossos 10 euros e saímos. A Irlanda tinha-se transformado numa nação de proprietários sem dar por isso. E nós éramos inquilinos.

Preços das casas triplicaram numa década
Entretanto, acabei o meu estranho romance sobre a Irlanda moderna. Os bandidos eram um pato-bravo e um ex-primeiro-ministro. Compreensivelmente, ninguém quis publicá-lo. O livro não fazia sentido nenhum! Os preços das casas irlandesas tinham triplicado numa década. Éramos ricos. A história era essa, a Irlanda era vencedora, fique lá caladinho.

Pouco depois da rejeição do livro, ficámos sem dinheiro. A nossa filha tinha acabado de nascer e fomos postos na rua no dia de Ano Novo de 2006. A nossa proprietária Tigre Celta era uma pessoa muito simpática, mas tinha re-hipotecado a casa para comprar mais propriedades. Não podia baixar a renda, que já não cobria, nem por sombras, o pagamento da hipoteca. Mas isso não tinha importância nenhuma, porque os preços do imobiliário iriam crescer eternamente.

Continuávamos a ter bons amigos, apesar de nunca os vermos. Um casal de bancários arranjou-nos uma casa em Dublin por metade da renda. Mas o crescimento económico foi… crescendo e, em pouco tempo, não conseguíamos pagar nem metade de um aluguer irlandês. Uma amiga de um amigo de Los Angeles ofereceu-nos a sua casa, numa aldeia em França, sem pagarmos renda. Emigrámos pela Ryanair, por 50 centavos cada um. Levámos duas mochilas, em que os artigos mais valiosos eram uma panela e um portátil. Aguentámo-nos na Irlanda nos anos de pobreza e desemprego – mas não conseguimos sobreviver ao grande crescimento económico.

A casa era minúscula, encantadora, a quatro quilómetros da loja mais próxima. Andávamos com o carrinho para trás e para diante, através de campos de alfazema e de milho. Enquanto a Irlanda crescia incessantemente, nós estávamos tesos, sentados debaixo de um sobreiro, a fazer um piquenique e a cantar. Então, houve um editor que comprou o livro. Arranjámos casa, no meio de muitos outros artistas tesos, na barata e falida Berlim. Um agente inspecionou os nossos impostos irlandeses nos anos do grande crescimento económico. Os nossos rendimentos eram muito, muito abaixo do salário mínimo; abaixo mesmo do subsídio de integração. Assobiou e disse: “Sie leben auf Liebe und Luft”. Vocês vivem de amor e ar.

Irlanda, o mais rico dos pequenos países da Europa
Um ano mais tarde, ganhei o BBC National Short Story Award, o prémio da BBC para contistas, com uma história que cruzava o Fianna Fail, o partido regente da Irlanda, com o Feiticeiro de Oz. As pessoas pensaram que era uma brincadeira. Fui convidado para ir ao maior programa de debates da Irlanda. Uma grande limusina foi-nos buscar ao aeroporto e levou-nos para um hotel de cinco estrelas acabado de inaugurar, construído com as reduções de impostos dadas pelo Fianna Fail aos construtores apoiantes das suas campanhas. Nessa noite, quando me perguntaram porque saí da Irlanda, o mais rico dos pequenos países da Europa, contei-lhes a história acima. E disse que o crescimento do imobiliário não era real. Que era como assistir a uma estranha religião que se espalhava por toda a nação, com as pessoas a apontarem para as casas e a dizer: “Vês esta casa? Vale cinco milhões de euros”. E não vale.

No meio do silêncio, no frio que se gerou na sala, percebi que todos ali tinham comprado uma propriedade e estavam a planear comprar outra. Tinham hipotecado a sua casa para comprarem aos filhos outra casa que, em breve, não ia valer quase nada. Estavam condenados, sem saberem. Um quarto da população olhava fixamente para mim. Acho que nunca me senti tão sozinho.

Volto à minha terra algumas vezes por ano e encontro-me com os amigos, cada vez num restaurante mais barato. Continuo teso, mas agora já posso pagar a minha parte da conta. Continuamos sem falar de imobiliário.

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