segunda-feira, 15 de novembro de 2010

NINGUEM COM BOM SENSO PENSA QUE A ACTUAL DEMOCRACIA É O MODELO ÚLTIMO DOS REGIMES POLÍTICOS E MUITO MENOS O FIM DA HISTÓRIA E DA DINÂMICA DA GOVERNANÇA DAS SOCIEDADES

Cuidado com o desnível de rendimentos

15 novembro 2010 The Times Londres

AFP

À esquerda e à direita, alarga-se o consenso de que o fosso crescente entre os salários dos executivos e os salários comuns está a asfixiar a classe média e a minar as nossas democracias, escreve o colunista do Times Anatole Kaletsky.
Qual será, nos próximos anos, a maior ameaça ao nosso estilo de vida e à democracia? Uma recessão de dois dígitos, o peso da dívida pública ou a guerra no Afeganistão? Nenhum deles, segundo dois dos pensadores mais perspicazes à esquerda e à direita, que estão decididamente de acordo quanto a um ponto: a desigualdade, em especial o fosso cada vez maior entre os muito ricos e todas as outras pessoas ameaçam hoje o consenso social e a estabilidade política, não apenas no Reino Unido mas também na América e na Europa, a um ponto nunca visto desde o período terrível que antecedeu as duas guerras mundiais.
Há pouco tempo, ouvi o antigo ministro conservador Michael Portillo descrever, de forma preocupante, a democracia como "uma experiência não testada", que poderá não sobreviver ao "desastre em curso" da desigualdade. Também li o novo e convincente livro de Will Hutton, «Them and Us» [eles e nós], que defende que a principal causa da crise financeira foi o abandono da "justiça" como princípio orientador da regulação financeira, da gestão económica e da política social.
Portillo admitiu a sua amarga desilusão face ao comportamento ganancioso e irresponsável da elite financeira e administrativa do Reino Unido. Os principais executivos de empresas financeiras de média dimensão recebem salários médios de dois milhões de libras [2,3 milhões de euros] e continuam a aprovar aumentos para si próprios, numa altura em que os trabalhadores comuns enfrentam cortes salariais e nas pensões. Segundo Portillo, estas disparidades podem vir a revelar-se incompatíveis com a democracia. Poderão as pessoas aceitar a democracia como um "acordo justo", quando só têm direito a eleger um novo governo de cinco em cinco anos, enquanto os seus patrões, que ganham 100 vezes mais, têm direito a aprovar aumentos salariais para si próprios, todos os anos?

A política virou à direita, na última década

Will Hutton defende que, além de ser moralmente repugnante, a desigualdade extrema impõe à sociedade enormes perdas económicas. Argumenta que, longe de incentivar a criação de riqueza e a inovação, a desigualdade enfraquece o espírito de iniciativa, por oferecer enormes compensações para situações em que o que alguns ganham resulta em prejuízo para os outros e que, simplesmente, redistribuem os recursos existentes. Quando o setor financeiro é absurdamente lucrativo, como acontece na América e no Reino Unido de hoje, o espírito de iniciativa e o talento são inevitavelmente desviados da verdadeira criação de riqueza.
E, para aqueles que afirmam que as enormes disparidades de rendimentos são uma consequência natural da necessidade de estimular o desempenho administrativo, em especial no setor financeiro, Hutton tem uma resposta notável: J. P. Morgan, possivelmente o maior banqueiro da História, "decretou que os seus principais executivos não podiam receber mais do que 20 vezes o salário dos trabalhadores do escalão mais baixo da sua empresa". Por conseguinte, não aceitaria pagar a alguém 81 vezes o ordenado dos trabalhadores comuns – a diferença média entre executivos de topo e trabalhadores vulgares, no Reino Unido, para já não falar num múltiplo de 300, que é hoje trivial nos EUA.
Só Deus sabe o que Morgan diria de outro dado chocante citado por Portillo: a desigualdade tornou-se tão extrema que os 74 cidadãos mais ricos da América recebem mais rendimentos do que o conjunto dos 19 milhões de americanos que se situam no fundo da escala. Mas aqui chegamos a um paradoxo tão espantoso como o aumento da própria desigualdade. Por todo o mundo, em vez de avançar no sentido de uma maior igualdade e de mais redistribuição, a política virou à direita, na última década.
Em vez de introduzir uma nova era de "justiça", a crise financeira e o Governo de coligação parecem estar a empurrar o Reino Unido na direção oposta, como indica a forte recuperação dos prémios e a natureza regressiva dos cortes. Por que está a política a agir contra as políticas de redistribuição, num momento em que a inquietação do público em relação à desigualdade regista uma escalada?

Desigualdade gera ressentimento contra políticas de redistribuição

Talvez a solução para esta situação esteja nas classes sociais que mais são afetadas pela desigualdade. Quando os rendimentos dos pobres diminuem, a desigualdade pode efetivamente ameaçar a estabilidade social e empurrar a política para a esquerda. Quando a florescente riqueza dos ricos é a principal causa da desigualdade, o impacto é sentido não pelos pobres mas pelas classes médias. São expulsas dos bairros agradáveis e não podem gozar do bem-estar que os seus pais consideravam como dado adquirido, desde as boas escolas a comer nos melhores restaurantes.
Este tipo de desigualdade gera o ressentimento contra as políticas de redistribuição, que favorecem sobretudo os pobres, à custa da classe média. É esta a situação hoje, no Reino Unido e nos EUA. A oposição popular às políticas de redistribuição no Reino Unido deverá intensificar-se, quando as reformas do Governo de coligação – fim do abono de família, aumento para o triplo das propinas universitárias, cortes nos salários e nas pensões do setor público – começarem a afetar fortemente os padrões de vida da classe média.
Mas, se a indignação da classe média do Reino Unido em relação à redistribuição tende a aumentar, qual é a resposta para a sempre crescente desigualdade no seio da sociedade britânica? Não sei fazer melhor senão voltar aos comentários de Portillo em Espanha: "Esta desigualdade é um desastre em curso. Mas nem sempre temos resposta para os desastres em curso”.

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