quarta-feira, 13 de maio de 2009

A AMIZADE, A FAMÍLIA E PORTUGAL




Como aqui escrevi há algum tempo ( vêr Parábola da Constrição do Tempo ), quem julga não está capaz de compreender porque quem "compreende" realmente fica desarmado para julgar.


Falo nisto por ser o cerne da amizade.


Pelo mesmo motivo, por ser o cerne da amizade, no mesmo texto ( Parábola da Constrição do Tempo) , dizia o Tempo, um velho personagem com a sabedoria dos tempos infindos: "Já reparaste que a nossa vida, ou seja a vida dos homens (...) é feita de acções que resultam de pensamentos que, sejam quais forem, correctos ou incorrectos, bons ou maus, são sempre revestidos de afectos de um de dois tipos?: no fundo tudo o que (...) os homens têm, fazem ou são, reduz-se (...) a duas coisas (...) ao sentimento do agradável ou do desagradável. Por isso, aquilo que é a essência dos homens é a afectividade. Pura afectividade."


O que eu pretendia dizer com isto, é que os afectos, no fim de tudo, são a essência do ser humano, já que todas as restantes funções do psiquismo que surjem quer a montante quer a juzante dos afectos, quer primeiro quer a seguir a um momento que capto como eminentemente sentimental e me transporta para pensamentos, são sempre revestidos de afectos de agrado ou desagrado no momento seguinte, e os impulsos, os actos institivos, os pensamentos que cremos racionais bem como a volição ( tudo o que diz respeito à vontade) sofrem o impacto determinante dos sentimentos e emoções que os revestem, e são por eles inibidos ou mantidos, quer dizer sempre orientados.


Dito isto, relevados os afectos muito para além do que antigamente se chamava funções psíquicas, defendo a tese de que a Amizade é de todos os afectos o mais importante e o mais nobre por ser o menos egoísta. Cingindo-me aos afectos eminentemente relacionais, a saber a amizade, o erotismo, e a paixão, que Alberoni tão bem descreveu, a amizade tem condições que a definem com bastante rigôr:


Primeiro: Se, como disse acima julgar é não ser capaz de compreender, o primeiro sinal de que estamos perante a amizade é sermos geralmente capazes de compreender o nosso amigo independentemente de aceitar o seu comportamento, o que ele faz, ou o que ele pensa. Ao meu amigo, posso não aceitar mas compreendo.

Segundo: por ser o menos egoísta, a amizade é um afecto que não exige nada, contrariamente à paixão em que quero para mim o amôr incondicional, a rendição total do ser amado - e por isso não posso fugir a "esse monstro dos olhos verdes", como lhe chamava Othello de Shakespeare que dá pelo nome de ciúme - ou à relação erótica, " de cama", em que exijo do outro que através dos olhos ou da mímica me passe um atestado absoluto de competência total na sedução, nas premícias e na excitação. Obviamente que aqui tem de estar presente sempre o ciúme, ou, ao menos o sentimento de ser cioso " daquela pessoa".


Terceiro: ao contrário da paixão e do erotismo a amizade é a único sentimento que exige reciprocidade: eu posso apaixonar-me por um/uma assassina, posso excitar-me e "fazer amor" com uma prostituta/o, sem que o outro sinta alguma coisa por mim, mas na amizade tenho de sentir reciprocidade. Na verdade, a amizade é a única emoção relacional que exige reciprocidade: eu não posso ser amigo de quem o não é para comigo - embora possa ser dele ou dela um bom conhecido que me é útil para me ajudar, facilitar a vida, orientar ou usar ( "meter cunhas ") para meu interesse. A confiança é tão importante que se, por momentos me puser a mim mesmo a dúvida de alguém ser meu amigo, é porque já o não é!. Aqui, na verdadeira amizade, não cabe o ciúme em condições normais embora possa subsistir o ser cioso, sobretudo quando os amigos são de personalidade exageradamente introvertida ou obsessiva. Mas em situações naturais e vulgares não há "jogos de competição" ou inveja , muito menos ciúme referida ao meu amigo/a. Por isso a amizade é a mais pura das relações sentimentais. O que espero do amigo é compreensão, ajuda na medida das suas possibilidades, plena autonomia e ausência de controlo, ou seja todas as condições para eu me sentir EU - independência com solidariedade.


Quarto: desta independencia e autonomia solidárias resulta a quarta característica a saber, o constructivismo do seu surgimento. Assim enquanto no erotismo e na paixão eu "capto" que alguma coisa muito intensa brotou entre mim e "aquela pessoa" , a tal química, o tal amor à primeira vista, o tal "clique para o engate da noite", na amizade a relação podendo parecer logo de início muito provável, necessita de tempo para se construir. Porque é a única que mesmo quando nasce por "revelação" necessita de ser construída com a naturalidade da natureza: a maturidade.


Quinto: finalmente, é precisamente por todas as quatro razões anteriores que a amizade não se inventa mas descobre, não se exibe mas se guarda no silêncio da intimidade, não se anuncia publicamente mas se vive quotidianamente mesmo na ausência por longas temporadas do nosso amigo/a. E é também por tudo isto que não acredito nas amizades da escola primária para a vida eterna, mas acredito que pessoas a partir duma idade madura ( vamos dizer a partir dos quarenta anos) se mantenham amigos toda a vida que lhes resta. Porquê só tão tarde? Basicamente porque a aceitação do modo de ser dos outros acaba por ter limites e se aos vinte anos vou seguramente orientar a minha vida por valores para mim e para os outros ainda incertos que podem provocar um afastamento doloroso e decepções intensas nos outros que julgavam ter-nos definitivamente do mesmo modo, quando somos maduros as escolhas básicas de valores, princípios, ideologias, gostos, modos de ser, etc, estão praticamente terminados e dificilmente mudarão. Aqui, aos quarenta ou depois, se surge a amizade, esta vai mesmo perdurar para o resto da vida. Além do mais porque, já maduros, não valorizamos os fait-divers da vida, toleramos melhor palavras equívocas melindráveis ou expressões ambíguas. No fundo todos sabemos que o essencial não está aí.




A IMPORTANCIA DOS AMIGOS



Há numerosos estudos sobre o erotismo ou a paixão. Há menos sobre a amizade o que é uma coisa estranha. Mas há os suficientes para sabermos algumas coisas importantes.


Há muitos estudos replicados que mostram que as pessoas com numerosos amigos têm maior probabilidade de morrerem mais tarde que os outros. E que a maneira de enfrentarem o sofrimento parece mais facilitada do que os que nunca fizeram grandes amigos. E ainda, que a presença, nem que seja por telefone ou interposta pessoa do amigo, no período de doença funciona como um "placebo". A minha estranheza por haver poucos estudos sobre a amizade comparativamente com os estudos de conjugalidade ou família, resulta desta mesma evidência: de a amizade ter um impacto maior no nosso bem-estar psicológico do que as relações familiares, que por natureza tendem a ser muito mais stressantes.


Há a este respeito um estudo de 2006 com 3000 doentes com cancro da mama que mostra que as mulheres sem amigos próximos tinham quatro vezes mais probabilidades de morrer da doença do que as que tinham mais de dez amigos. É claro que podemos sempre pensar que as mulheres que são capazes de terem mais amigos podem tê-los precisamente porque tem já "a priori" uma personalidade mais equilibrada, são mais cuidadosas com a sua saúde e a dos outros, e estão por isso mesmo sujeitas a muito menos stress. Mas, mesmo assim, porque não treinarmo-nos na amizade, ou seja darmo-nos mais liberdade para nos juntarmos aos outros?


Porque há coisas que podemos vêr. Por exemplo esta evidência: as pessoas com relações fortes têm menos probabilidades de se constiparem, pensa-se por terem níveis de stress menores. Talvez pelo efeito de sugestionabilidade como ficou demonstrado num estudo de há dois anos da Universidade da Virgínia com 34 alunos que foram levados para o sopé duma colina inclinada e a quem foi pedido que calculassem o declive da colina. Os declives calculados pelos alunos acompanhados por amigos eram mais suaves e tanto mais quanto mais antigos eram os amigos presentes.




A AMIZADE NA FAMÍLIA




Freud descobriu o complexo de Édipo , como suporte para a fase genital, iniciada a partir dos três anos nas crianças, através da mitologia grega. Édipo era um rei grego que foi separado dos pais em tenra idade e criado por outras pessoas. Quando jovem, Édipo cruzou-se com um desconhecido que era seu pai ( então rei de Tebas ) e numa disputa matou-o. Mais tarde quando Édipo entrou na cidade de Tebas encontrou-se com a mãe ( Jocasta ) sem saber quem ela era, enamorou-se dela e tomou-a para casamento. Pois bem, Freud achava que todos os rapazes têm estes desejos "incestuosos" pela mãe e passam por uma fase em que odeiam o pai como um rival, situação conhecida como edipiana. Mas a história de Édipo não termina sem um desfecho trágico: quando descobre que tinha assassinado o pai e casado com a mãe, Édipo não aguenta a culpa e intencionalmente cega-se (como para não vêr, e não vendo esquecer o que tinha feito).


Na base desta competição não está o ciúme como uma espécie de ódio reprimido que o filho sente pelo pai, mas talvez, algo mais simples. Nós como crianças, identificamo-nos com os mais fortes com quem consideramos melhores, mais hábeis. Por exemplo as últimas sondagens feitas em Portugal mostram que os grupos etários mais jovens em todo o país tendem a já não serem adeptos do Benfica, mas do F.C.Porto!


Se amamos o mais forte admiramo-lo. Se, pelo contrário, por qualquer motivo principalmente a influência do outro conjuge, prevalece o rancor ou até o ódio, invejamo-lo. Pensamos, porque lhe conhecemos a incompetência ou a mediocridade :" eu é que merecia!". Isto é inveja pura e dura.


Para as raparigas o problema é o mesmo com a natural inversão dos papéis.





A ACELERAÇÃO HISTÓRICA DO NOSSO TEMPO




Com o surgimento da guerra do ultramar as mulheres foram chamadas em Portugal a um papel social até aí imprevisível.


Se hoje Portugal é o país europeu com maior percentagem de mulheres a trabalhar fora de casa, à guerra se deve. E com o trabalho na indústria e nos serviços veio a independência financeira a qual com a descoberta de meios anticoncepcionais como a pilula, colocaram as mulheres portuguesas fora da dependência masculina e tão independentes como o homem no plano financeiro; e numa cultura em que dinheiro significa posse poder e prestígio, a mulher aparentemente atingiu numa geração o que não alcançara em cem. Mas os afectos profundos não mudam tão depressa. Por isso, a mulher portuguesa passou a ter três trabalhos ( mulher -a-dias, perceptora dos filhos e funcionária de qualquer coisa ),mas ganhando só por uma (funcionária de qualquer coisa). Ou seja a convergência de afecto e razão, cindiu-se em matéria ( posse, prestígio e poder ) e afectos (cuidados com os filhos sobretudo). Como pano de fundo, a legislação mudava em benefício da mulher e a Vox Populi aderia acriticamente à mudança.


Com a cisão de afecto e matéria, os valores femininos mudaram e emergiram no casamento dois fenómenos até então invisíveis: a intolerância ao medo e a competição entre homem e mulher.


Se a intolerância ao medo (físico ou psicológico) do poder do marido criou o justicialismo em que a mulher passou a basear a intenção de divórcio, a competição entre os cônjuges teve um efeito muito mais perverso, porque serviu de modelo aos filhos, quer fossem rapazes quer fossem raparigas, para a exibição da inveja. Pois se pai e mãe competiam entre si para mostrar como eram melhores no trabalho pago, e se, qualquer promoção de um deles deixou de ser vista pelo outro com o afecto do aconchego mas sim como mais uma ameaça ( por isso mesmo injusta) à regulação do poder conjugal, estava criado o caldo de cultura, melhor, o modelo da inveja ao pai ou à mãe, consoante a identificação do filho. E sendo ambos os progenitores figuras de autoridade, ficou criada a condição fundamental de, pela via da inveja, criticar e contestar com a mesma agressividade vivida em casa qualquer princípio de autoridade. Quer fosse o professor, quer fosse o polícia, quer fosse o patrão, quer fosse a autoridade política.


Eu sei do que falo. Um dia o meu filho surripiou-me um tratado técnico. Quando lho pedi de volta escreveu-me uma breve missiva que dizia irritadamente:: " Que mais esta pequena grande prova de boa vontade te inItálicospira, finalmente, a PAGAR (€) o que deves".


E nem sequer lhe passou pela cabeça que para além da má educação estava impregado pela inveja que a competição observada em casa provocara nele.


Aconteceu neste caso algo para o que os pais portugueses não parecem preparados, tal a rapidez das mudanças. Primeiro, o empolgamento da nova mulher casada portuguesa, mas pior ainda, a sua tendência para fazer dos filhos seus cúmplices como se de amigos ao mesmo nível (como é próprio dos amigos ) se tratasse. Na verdade, e por uma espécie de mimetismo com o qual nenhum pai pode concorrer com vantagem, o(s) filho(s) identificam-se com o mito da subserviência ( a mulher) que se revolta e lhes dá a mais uma relação horizontal sem hierarquia e que assim aparece e se parece com a amizade. Não só não o é porque fenómenos de adoração/paixão estão bem presentes, como também estão presentes fenómenos próximos do erotismo - duas dimensões dos afectos da relação que excluem a amizade - como não poderia deixar de ser porque a autoridade requerida com a educação jamais permitiria a pura relação de amizade.


No entanto é esta a moda da educação familiar em Portugal.

1 comentário:

  1. Meu querido José Carlos, fiquei tão sensibilizada com as tuas palavras neste artigo que não resisto a ... bom!... na verdade, o que quero mesmo dizer-te, com a simplicidade que as palavras profundas possuem, é o seguinte: sou uma privilegiada por ter cruzado o meu caminho contigo. Estou muito grata à Natureza por esse facto. : -)
    Saudades, Elisete

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