segunda-feira, 1 de junho de 2009

Eutanásia II

resumo:

-a globalização dos conhecimentos e a aceleração do tempo histórico são factos.

-estes factos, conjuntamente, impuseram uma noção nova de sofrimento.

-esta noção não destrinça a dor física da dor psíquica.

-a antecipação do sofrimento que é conhecido do doente terminal, é central.

-face ao conhecimento desta indignidade é forçosa a eutanásia.




1 -A NOÇÃO de SOFRIMENTO



( i ) Quando dava aulas na Faculdade de Medicina do Porto, introduzi este tema nas aulas. A tese que defendo é a de que há uma progressiva intolerância ao sofrimento visto não só como dôr física mas também como consciência de handicapes psíquicos irreverssíveis, por um lado, e a de que o caminho da civilização actual continua a promover mais e mais sofrimento que não vai parar tão cedo.





Quando hoje falamos da intolerância subjectiva à indignidade da doença, temos de contar com a cultura da imagem saudável. Naqueles que se habituaram a cultivar essa cultura - e. g. nos médicos e enfermeiros ou pessoas com alto desempenho social que escondem a sua doença pela vergonha que lhes advém de viverem numa sociedade que premeia todo o pretenso sucesso (físico ou mental) e o " bom aspecto" , e a " boa aparência", e a " beleza ", e a " gente bonita", e o culto egoísta do "saudável". E também naqueles que olham reprovadoramente e de esguelha que não se use protector solar, não se ponham dentes cerâmicos à frente das cáries, ou inventem peitorais artificialmente desenvolvidos em consultórios médicos , ou abdomens construídos com esteróides ou em ginásios; ou ainda naqueles que toleram umas fumaças de tabaco ou o vinho tinto às refeições que, forçosamente, deveriam ser de ervas e parcos legumes.


Quando a maioria da minha geração cumpriu a sua guerra do Ultramar trazia - quando tinha a sorte de voltar - um sem número de estórias. Estórias do dia-a-dia com que se preenche a existência numa guerra. Um tipo comum de estórias, eram as que narravam cenas ligadas à profissão médica. Uma delas dizia respeito aos trabalhos de extracção dentária aos civis, num trabalho de guerra a que chamavamos " os da psique " e tinham como alvo retirar apoio popular ao inimigo. E uma das coisas que os meus colegas que vinham de África me contavam era a capacidade que os negros manifestavam para aguentar as dores físicas. E davam como exemplo o seu extraordinário estoicismo para suportar as dores de extracções dentárias. Realizadas ao estilo do século dezanove, sem anestesia, não se lhes ouvia um ai, como se, para eles, se tratasse da coisa mais natural desta vida.


Note-se que nenhum dos meus colegas médicos me disse que os africanos não sentiam as dor, antes que as suportavam com naturalidade. Por essa altura, começava no Continente o hábito de os estomatologistas (ainda não havia médicos dentistas) "tratarem "os dentes em vez de procederem à sua extracção; mas quando de todo em todo ela era necessária, então era com anestesia local, primeiro com líquido anestésico na superfície da gengiva e depois desta conseguida, com um anestésico injectável.
Por essa altura ainda, já na Noruega nenhum dentista local se lembrava de extrair um dente que não fosse com anestesia geral porque a civilização assim o exigia...e os doentes não queriam vêr agulhas.
Ou seja, tudo parecia acontecer como se, à medida que subíamos na geografia do mundo da civilização, a dôr fosse decididamente considerada intolerável. Muitos outros exemplos poderiamos encontrar, tais como o parto por cesariana ou a amamentação artificial para evitar a inestética mamária.
Mas não era só no plano da dôr física que o" direito à saúde" se manifestava.




( ii )Quando após a Segunda Grande Guerra os U.S.A., todos poderosos, impuseram ao mundo as suas condições de vencedores, transportaram para os novos orgãos de governação mundial as suas ideias. E quando deram luz verde para a constituição da Organização Mundial de Saúde influenciaram decisivamente o seu normativo. Por isso, nele, e logo no seu primeiro parágrafo, quando se define a saúde, o que ficou escrito foi esta aberração : é o completo bem estar físico, mental e social.



Poderia pensar-se que a frase era uma utopia apologética propositada para forçar maior rapidez, por parte dos Estados, na implementação de boas práticas de saúde o que seria uma boa intenção. Mas o certo é que o seu efeito foi perverso porque ao abranger com tal noção o completo bem estar social, assim mesmo ..., bem poderíamos considerar que no dia em que a minha padeira estivesse impossibilitada de me trazer a casa, como de costume, até por estar de greve, o pão que barro de manteiga para que o café da manhã me saiba bem, eu estava doente...porque estava em mal-estar social!!!
Rapidamente se percebeu que isto era um erro mas nunca houve coragem e lucidez para corrigir este e outros erros. É que uma vez anunciado uma ideia mesmo aberrante , desde que o anúncio venha por quem putativamente detém Autoridade na matéria, a ideia passa a facto real.

Há alguns anos no mundo da ciência psiquiátrica surgiu mais um jargão para explicar isto mesmo que já era do conhecimento geral : o self-fullfeeling prophecy. Se este palavrão não serve para mais nada, serve para atestar a falta de lucidez de quem manteve as normas da OMS assim. Realmente aquele palavrão anglo-saxónico mais não quer dizer que uma declaração enunciada e anunciada por uma autoridade ( a prophecy ) muito provavelmente transformar-se-à numa realidade. Qualquer psicoterapeuta sabe que isto é verdade desde sempre, e até quando bem aplicada, tem um ( desejável ) efeito placebo e pode estar na base do ganhar de confiança no tratamento dos doentes - o que é meio caminho andado para a cura. Mas também, todos os psiquiatras sabem que, se mal usado, este fenómeno é uma bomba na vida de um doente : imagine-se que um paciente vai narrando ao seu médico os motivos porque teme que o seu casamento termine em divórcio e ouve da parte do " especialista" a frase fatal "Já não tenho dúvidas, já nada pode salvar esse casamento e o melhor é preparar-se desde já para isso!" . O que neste caso vai suceder é simples: este paciente vai começar a vêr em tudo o que o conjuge faz ou diz, a prova-provada do que disse o " especialista " com isto irritando ainda mais o cônjuge numa espiral de feed-back positivo que se alimenta e rectro-alimenta no modo como cada um deles reage ao outro.... aí encontrando sucessivas provas da profecia do "especialista "....




( iii )Tudo isto mostra a necessidade de usarmos de continência verbal, quer nas daclarações privadas quer nas de ordem pública como as da OMS. Por isso, porque a OMS levantou expectativas que jamais serão cumpridas, é responsável por muito do sofrimento que por aí vai. Mas não só esta organização. Outras, como os partidos políticos, por toda a parte são responsáveis.
Em Portugal, com o início do consulado de Marcelo Caetano, a partir de 1968, tornou-se uma necessidade a exigência de melhores cuidados de saúde. O que era obviamente justo e natural, descambou a partir do 25 de Abril de 1974 e com o advento da democracia multi-partidária e a sua natureza demagógica ( quando há vários competidores políticos para eleições, nunca à face da Terra se evitou a demagogia mais desenfreada ), os vários partidos políticos sem excepção, iniciaram as mensagens do"direito à saúde ", colocada no mesmo pé do direito à habitação ou ao trabalho. E ninguém se lembrou de questionar se isso era coisa que existisse ou se que o que existiu, existe, e vai existir é (era ) o direito natural à doença!. Ninguém se lembrou de questionar isto, a meu vêr, por três motivos principais: primeiro, a OMS, havia já declarado, Ex-Cathedra, o que era a saúde. E, ao introduzir nela a dimensão social, convidava, de mão beijada, os partidos ao debate sociológico da coisa, quer dizer, chamava ao campo ideológico mais básico dos partidos políticos o debate sobre o tema, fornecendo-lhes o terreno ideal para se guerrearem demagogicamente face aos eleitores, através duma questão que sendo hipersensível para eles, não poderia ser mais abrangente das gerais preocupações da Polis.; segundo, porque, em campanha eleitoral que é o estadio vulgar, normal e permanente ( fora e dentro dos ciclos eleitorais ) de todo e qualquer partido, não se limpam as armas das guerras da saúde - o melhor exemplo dos últimos anos é o modo como todos os partidos portugueses " queimaram " e correram do governo o melhor ministro da saúde de sempre ( o único que estava a fazer uma reforma do SNS que lhe permitisse a sustentabilidade ) de seu nome Prof. Doutor António Correia de Campos; e, em terceiro lugar, porque só masoquistas, doidos ( pela verdade ) ou grandes patriotas ( três tipos de pessoas que é difícil encontrar nas ondas edonistas da História ) é que se atreveriam a dizer que a doença é natural, ou que para aprender é necessário o respectivo esforço, ou ainda que para educar é necessário prescindir do prazer de ser simpàticamente permissivo, ou que para ser rico é preciso trabalhar e não "jogar " na Bolsa, ou que para gostar é necessário passar pela experência de já não ter gostado, ou que a vida nunca corre sem trabalho, ou que o sofrimento é inevitável e por isso natural - porque tudo isto, e muito mais, anda enlaçado quotidianamente. O que quero dizer é que a cultura do prazer, nem sempre assumidamente edonista, o que ainda piorava mais as coisas, andava por toda a parte e, assim, não podia deixar de fora a Saúde. Como diziam os trotsquistas (Louçã ) e os UECs ( Zita Sabra ) do meu tempo da Universidade, a política está em toda a parte e mesmo nas nossas não tomadas de posição estamos a ter uma postura política....




( iiii ). É claro que o culto de uma sociedade assim, feita de aparências e não de essências, que transforma aquelas em valores absolutos ( que por isso mesmo se auto-justificam ), não pode senão exponenciar toda a forma de sofrimento de quem nela vive - porque todos acabam no desmesurado esforço emocional de concorrer uns com os outros, a esconder uma falha, uma assimetria, uma não assepsia, um mau cheiro , uma doença enfim.




E não colhe dizer que é antiga a "alergia" à doença e sobretudo aos doentes ( e.g., a lepra ), porque na Idade Média eram só meia dúzia de fidalgos e outros tantos artífices que eram os assépticos. Não. Agora somos todos. E por isso, sofremos. Porque não ser asséptico já é doença. Porque já é indigno. E quanto mais indigno, mais doença é. Porque sentir-se a gente indigna já é doença, hoje, não é? Porque nos dizem que nós temos todos o direito à saúde, não é ?







2 - O CAMINHO DA CIVILIZAÇÃO ACTUAL PROMOVE SOFRIMENTO



As dimensões fundamentais da nossa existência, como a relação com a morte ( intrínseca à discussão da eutanásia ou da guerra ), tornam-se sempre num tabu, como o eram já nas sociedades mitológicas - o que não queremos vêr ou não sabemos explicar, é mantido sob grande ocultação.




( iiiii )- No meu consultório lidava com a dôr e o sofrimento nas vertentes física (e.g. cancro ) ou psíquica. Um dia, a uma paciente que divergia do marido no modo de educar os filhos comuns, achando que o marido era demasiado exigente para com um filho, perguntei-lhe:


- Pensa que o futuro que aí vem, vai ser mais fácil de viver pelos seus filhos do que o nosso está a ser vivido pela nossa geração? Ou seja, acha que as coisas vão ser mais fáceis no futuro? Ela respondeu de pronto que não, que achava que ia ser mais difícil.


Então, perguntei-lhe se ela achava que haveria grandes mudanças, e no caso de achar, se essas mudanças tornariam a vida mais fácil ou difícil aos filhos.


Ela respondeu que haveria mudanças e que essas mudanças tornariam a vida mais difícil.


Perguntei-lhe porquê, mas ela não sabia dizer porquê.


Quando a inquiri sobre se a necessidade de nos adaptarmos a novas circunstâncias facilitaria a vida, ficou perplexa mas depois respondeu:


-"Acho que se vai complicar".



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( iiiiii)Pois bem, é este, a meu ver, o cerne da questão.


Não tenho dúvidas de estarmos a assistir a uma aceleração do tempo histórico, de tipo geométrico, e já não aritmético. Por exemplo:


Em França, em 1965 havia 136 pessoas inactivas por 100 activas; em 1970, havia 145 por 100 activas; em 1975, havia 149 por 100 activas; em 1985 havia 152 por 100 activas; actualmente umas 178 por 100 activas.



Em minha casa, há quarenta anos gostava-se de chocolate, amava-se os pais, e adorava-se Deus - talqualmente como em casa dos meus avós e seus ancestrais; mas um dia reparei que a minha filha dizia que gostava de Deus, amava a mãe e adorava chocolates - e, como ela, toda a sua geração, e a mudança não era sòmente lexical mas sobretudo semântica.


Em 1850, o próprio homem ( citado de J. Charbonneau, " cristianismo, sociedade e revolução" )tinha de fornecer 15% da energia de trabalho, 79% cabiam aos animais, e 6% às máquinas; em 1960, 3% iam para o homem, 1% para os animais, e 96% para as máquinas.


Dizia Moliére numa carta pessoal:- "Onde há galos não cantam galinhas!"; e dizem agora muitas mulheres que segui no consultório sobre os maridos enganados :-"Enganado, aquela besta?, Ó dr., sabe muito bem que ele andava a pedi-las, só que agora, para mim, tudo o que vier à rede é peixe!".


Já houve tempos de grande aceleração histórica, como na Atenas de Péricles, o período das Guerras Púnicas em Roma, o período do Iluminismo , e, há dois séculos, a Revolução Industrial em certos países europeus, mas nunca por nunca como agora. A Organização Mundial do Trabalho (OMT) considera que nos próximos trinta anos, 40% das actuais profissões desaparecerão e 60% de outras novas surgirão.


Quem, da minha geração ( a dos sessenta anos ) não se recorda do caseiro do dono da terra? Dos aguadeiros das cidades ( homens ou mulheres que transportavam pelas ruas uma enorme bilha de água que vendiam ao copo)? Dos caldeireiros ? Dos ferreiros? Dos ferradores? Das padeiras ambulantes? Das peixeiras de rua ? Dos marçanos de bicicleta ? Dos alfaiates ? Das modistas ? Dos torneiros mecânicos ? Dos decapadores das serralharias ? Dos pedreiros que trabalhavam a alvenaria das casas ? Dos afiadores de facas e navalhas com o colorido das suas gaitas ? Dos engraxadores de sapatos à porta dos cafés? Dos vendedores de gravatas?, Dos camiseiros? Dos moleiros? Dos retroseiros? Dos revisores de provas dos jornais ? Dos motoristas das famílias ou até dos mordomos ? Das governantas ? Das criadas internas ? Das preceptoras? Dos ourives artísticos?, Dos carvoeiros que traziam a nossa casa o alimento dos fogões a carvão? Dos cobradores da Carris? Dos cobradores da água e da luz? Dos encadernadores a couro ou papel dos nossos livros? Dos tipógrafos com letras de chumbo dos jornais? Dos carqueijeiros ? Dos sapateiros de meias-solas? Das dactilógrafas ( da Academia Tecla ), Das cerzideiras. Dos Calafates e carpinteiros navais (nesta minha Vila do Conde tão importantes ), Dos fotógrafos dos jornais ( que estão a ser substituídos pelos próprios repórteres que fazem escrita e fotos ), Etc, etc. Sendo verdade que algumas destas profissões ainda existem, residualmente, a maioria acabou, e faço notar que esta elencagem foi feita ao correr da pena....



Se tivermos presente, que os homens e mulheres destas, e de muitas outras profissões, eram-no porque os seus pais já a exerciam e lhes passavam a arte e os necessários instrumentos numa espécie de carreira que era como que consuetudinária, fica claro que, carreira como sinónimo de emprego para toda a vida, acabou de vez, e aquilo que nos espera é simplesmente um trabalho não herdado do pai ..., além do mais porque o do pai, ou vai acabar, ou tornar-se tão diferente que dele só ficará o nome. Ou seja, a haver trabalho, ele será novo - com um conjunto de novas funções e cada uma destas com outras tarefas -, exigindo uma nova adaptação cada vez mais difícil, terá características precárias e exigirá provàvelmente várias mudanças, até de local de residência, ao longo da vida. Ora, tudo isto custa muito nos planos físico e psicológico. Passamos assim a ter exigências adaptativas completamente novas na história da humanidade e que vão ocorrer a uma velocidade estonteante; sendo que essas competências ( habilidades e capacidades) para outros exercícios profissionais serão, também, cada vez mais diferentes.


Tudo isto significa que, por que a organização social anda atrasada ( cada vez mais ) em relação à super-desenvolvida estrutura científico/tecnológica, não pára de aumentar o fosso entre os sub-sistemas sociais. O que digo, é que no campo bio-cultural há contradições que se enraízam na crescente incompatibilidade entre a super-estrutura cultural e as exigências naturais da biologia humana. E que a civilização criada pelo homem moderno, tende a ignorar todas as limitações biológicas e imperativos filogenéticos da espécie humana.




Como escreveu Conrad Lorenz, prémio Nobel da Medicina e Fisiologia em 1975, " o ritmo da evolução genética no homem encontra-se hoje constantemente em atraso relativamente ao ritmo da sua evolução cultural. Daqui resulta que o desafio que o homem lança a si mesmo por meio da sua vida cultural acaba por ultrapassar em amplitude a totalidade das suas capacidades genéticas". E conclui oportunamente:" Esta contradição basta para explicar o afundamento de civilizações altamente desenvolvidas em certo momento da sua evolução" ( sublinhado meu ).


A esta incompatibilidade entre biologia do corpo e da psique, e a cultura humana, soma-se a contradição entre cultura moderna e o próprio planeta. Escreve C. Lorenz :"Quando se vê o homem chegar ao extremo de se servir de tais técnicas ( a nova tecnologia ) para atacar a natureza viva e destruir deste modo os próprios fundamentos da sua existência, pode pensar-se que é uma verdadeira doença mental, uma autentica doença maciça. Mas quando os homens se empenham em seguir este caminho, mesmo com a certeza de que ao fazê-lo não só aniquilam recursos destinados aos seus filhos e aos seus netos, como ainda o oxigénio que eles próprios respiram, então já não se pode falar em pecado ou loucura. Trata-se de um crime".


Ao mesmo tempo, a globalização do conhecimento dominante fez emergir a homogeneidade: o homem uniformizou-se através da vulgarização que elimina as diferenças, as características locais e as pessoas, para dar lugar ao homem médio em todo o mundo, no que é uma involução filogenética nunca antes vista, e cuja causa é a uniformização das pressões selectivas em todos os "espaços " humanos. De modo que, quando não ocorram, levam à ostracização dos humanos transgressores. E, definitivamente, à massificação/vulgarização ( toda a vulgarização banaliza... ) que transporta consigo a bestialização do homem a um ponto que nem Ortega e Gasset poderia imaginar ao escrever " A Rebelião das Massas ".





( iiiiii )Esta uniformização/nivelação (por baixo) do humano, que releva o que de mais básico é o seu denominador comum - a sua animalidade biológica -, está a implicar uma rápida perda nas capacidades adaptativas da espécie ( humana ) que já exibe numerosos exemplos de fenómenos secundários de domesticação corporal, como o aumento da gordura , a diminuição da combatividade, as obsessões sexuais, a diminuição da selectividade sexual, a multiplicação de casos de obstipação intestinal, as disfunções gastro-enterológicas, o aumento das doenças bronco-pulmonares sobretudo de tipo asmáticas ( pela poluição do ar e pelo abuso do tempo de vida passado em locais fechados ao contacto com a polimerização na infância, ou a excessos de ar condicionado ), as lesões renais ( por via das comidas e bebidas light ), as doenças mentais com o sintoma precoce do culto do físico em ginásios e afins ( onde pára o corpo são em mente sã ?), levando ao exponencial aumento dos quadros clínicos de personalidades anancásticas e de doenças obsessivas ou paranóides. Vamos todos de férias ao mesmo tempo, para os mesmos sítios; tentamos comprar os mesmos carros; usar a mesma roupa; fruir de iguais segundas casas, e assim, sem cuidar de vêr que nos obrigamos a viver aprisionados a regras de vida que mata a Vida, e que, de repente, ir de férias, fazer compras ou mudar de casa, passaram a ser momentos de resposta stressante maior que a viuvez ( segundo a medição pelas escalas de "event-life", chamada de " acontecimentos vitais na vida da gente" ). E, são cada vez em menor número os que reparam que os animais humanos são cada vez menos humanos- isto é diferentes - e cada vez mais animais - isto é iguais.


Andamos em fila-indiana, porque toda a diferença é hoje suspeita, e feita para cumprir presenças. Vamos para um estádio desportivo ou um teatro porque todos ( os nossos, os iguais a nós, vizinhos em estatutos sociais e outros ) vão - não pela qualidade do espectáculo mas para exibir a sua "inteligência social"; como vamos ao bar da moda, não por sermos melhor servidos, mas para exibir " inteligência existencial", para mostrar que existimos. Ou seja, vamos para onde parece que há ( como as galinhas que não pensam antes ) e não para onde há ( o que seria natural nos humanos).


Por tudo isto, damo-nos cada vez menos a liberdade de Ser, porque as entidades que achamos que são Autoridades, nos lembram a cada momento que melhor é parecer .... ,para viver sem o ónus de ter de explicar porque é que somos assim diferentes.

E, pois é, uma das Autoridades é a OMS ! E se ela nos diz para lavarmos as mãos a gente lava, se ela nos diz para não beber, a gente fica com sede, se ela nos diz que os antioxidantes é que são bons, vamos ao selénio, se ela diz nos diz que a cenoura faz os olhos bonitos ficamos a manducar que nem ratos; e se ela nos diz que a greve da padeira é para nós uma doença, ficamos logo doentes ! Sempre bem, porque sempre acríticos. Afinal não consta que os animais são felizes?




(iiiiiiii) Aqui chegados, voltamos à minha doente que achava que a vida se ia complexar e complicar para o futuro dos filhos. Mas em que sentido? No sentido em que é possível prever que a vida vai passar a exigir muito mais aos vindouros do que a nós. Vai exigir deles , acabado que está o emprego para toda a vida, na mesma terra, na mesma casa, com os mesmos vizinhos, confortados pelos amigos de nascença - tudo num clima de confiança que resultava do conhecimento envolvente e da imutabilidade das coisas - vai então exigir deles a dureza da adaptação permanente a novas profissões (com novos postos de trabalho, novas funções e novas tarefas), a novas terras, a novas gentes (com a consequente minimização dos amigos de sempre), a vivências de desconfiança sobre as reais intenções dos desconhecidos, e do trajecto do Devir, tudo isto levando a uma psicologia subjectiva que é tangencial à psicose paranóide persecutória e à ritualização doentia de todo o tipo de comportamentos, sendo que não há nada que provoque mais sofrimento que doenças obsessivas ou paranóides.


E tudo isto, ocorrendo provàvelmente, num "caldo de cultura" para outros fenómenos ( decorrentes de tudo o que atrás ficou enunciado ) que - por arrastamento dos anteriores - acarretam por sua vez, ainda mais sofrimento. São coisas como a fragilidade do casamento e a sua ruptura; o enfraquecimento das fratrias com o cortejo de Cains e Abeis; a volatilização das relações de gratidão consuetudinária de pais para filhos; o drama da antecipação duma velhice na clausura dum lar de velhos; ou a incapacidade da escola , sempre atrasada da realidade social na distribuição dos conhecimentos necessários, e assim.


Não é, por isso, difícil adivinhar que as grandes aspirações humanas passem a assentar na conservação dos valores ligados à confiança e ao acompanhamento compreensivo, quer dizer ao cuidar, ao ser cuidado. Como as crianças, permanecendo crianças toda a vida, passaremos cada vez mais a desejar do fundo da nossa alma que cuidem de nós. É por isso também, que mais que em qualquer outra época histórica sentiremos a necessidade de casar com o secreto desejo de casar-mos (nós homens ) primeiro com a mãe ideal ( que nos securiza ), depois com a amiga ideal ( que nos compreende ) , depois com a amante ideal (que nos dá prazer) e só no fim, com a esposa e mãe dos nossos filhos.


A mãe e a amiga ideais ( e para as mulheres é vice-versa ), passam a existir aos nossos olhos para cuidarem de nós. Para nos "curarem" das doenças do nosso tempo que têm como matriz a incapacidade subjectiva de sermos compreendidos e apoiados. Porque curar dá origem a cura ( o padre ) e a cura ( o médico ).


Assim se vê que a noção de cura evoluiu da erradicação de doença (tirar uma seta da coxa ) para o alívio dela( arranjar um colerético para a vesícula) , e depois para a supressão do sofrimento ( físico e psíquico). Porque o conhecimento que todos nós temos do que vem a seguir a uma doença que nos dizem que é grave, implica, de imediato, uma determinada dor psíquica ( a que resulta do culto do saudável bonito, e a que resulta da antecipação angustiante de tratamentos que antes ou não existiam ou não eram do nosso conhecimento).

O que não passa da generalização de situações anteriormente pontuais. Desde a Idade Média e até há pouco tempo, o "senhor abade" tomava a seu cargo as almas de todos os que viviam no seio da sua Igreja. Esta responsabilidade assim como o trabalho realizado por ele junto do seu rebanho, denominava-se "cura animorum", ou seja cura das almas. Daí que cura tanto possa significar responsabilidade por ( como cuidar da alma da responsabilidade do padre ), como propriamente cuidar de (da responsabilidade do médico ). Assim, não é possível actualmente distinguir sofrimento físico do psíquico. E por que o sofrimento, como vimos, tende a aumentar, bem como a sua intolerância, lógico é que o "cura" de hoje actue no sofrimento, designadamente aquele que gerado ao longo da vida pela angústia de expectativa de dôr na morte, e que dá, pela sua intolerância, pelo nome de sofrimento terminal. Face a esta ( em parte nova ) vocação do médico, cabe-lhe, se o doente assim o quiser, o acto da eutanásia ( = eu, boa + tanatos, morte ).


Desde logo porque sendo a ideia da antecipação da morte um sofrimento que a generalidade das civilizações não aceita como digna - no que se diferencia da morte de antanho - e sendo ainda mais verdade que este "movimento" vai agravar-se (independentemente do juízo subjectivo que qualquer um faça desse facto) alimentando como num círculo vicioso o problema e o sofrimento, passou assim a entrar na órbita da responsabilidade do curador. Responsabilidade médica.

3 comentários:

  1. Sejamos então esse "bando de doentes" hipoteticamente "saudáveis" naqueles momentos que nos tornam diferentes dos demais.
    Dizem que não morremos simplesmente para nós mesmos, mas uns para os outros... gostamos mesmo de complicar tudo... bjs
    (titamatos1@gmail.com)

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  2. É verdade Tita. A vida não vale nada mas não há nada que valha a vida.

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