quarta-feira, 29 de abril de 2009

PARÁBOLA DA CONSTRIÇÃO DO TEMPO

(C.S.P.)

A árvore do Tempo espraiou-se pelos seus ramos e ramúnculos apontando em todas as direcções do Cosmos sem excepção. Nos extremos dos galhos mais delgaditos, os frutos da árvore do Tempo, os Relógios, prepararam-se para as vinte e quatro mudanças subtis de cores e brilhos, cheiros e gostos, sons e tonalidades, a cumprir o destino desse novo dia.

Tempo: Juízo, relógio!. Juízo meu pequeno traquinas!. Ainda nem sequer os galos cantam, e já tu, arrogante e sobranceiro como todos os petizes, te sacodes e esperneias como se o novo dia fosse a última coisa da Vida. Dás cabo da minha paciência.

Relógio: Lamento ter de lhe dizer, S. Majestade o Tempo, que a época da subserviência já passou! Você não passa duma abstracção que não conta para nada e por ninguém é levado a sério. Olhe cá e pense bem: não fôra eu com toda a energia da minha juventude e o ardor do meu sangue novo e já vocemecê (como diriam os seus ancestrais) estaria enterrado ontem à noite e nada de si restaria hoje pela matina.

O Tempo espraia-se pelos galhos, range no tronco enrrugado de rugas cavadas e manchadas, e, numa voz mussitada de experiência feita:

Tempo: Eu te darei de mim o que precisas, para que possas, lá para mais tarde, compreenderes e poderes vêr o que por agora não alcanças.


Relógio: Mas que é isso avôzinho pateta? Ameaças veladas? Subtis ambiguidades? Amostragem do superior cajado do pastor que me remete para a inferior condição de estúpido carneiro?.... Ou,...talvez antes, reles sintomas demênciais?

Responde o Tempo sacudindo-se ainda mais uma vez do torpôr:


Tempo: Seja, não vou esmagar-te nem deixarei que a tua própria fatuidade te esmague. Nem acho que necessitemos de concorrer ou competir ou assim..., afinal o meu domínio é da ordem do Cosmos e dos buracos negros que se expandem e retraem ao exalar da minha simples respiração. O meu domínio é da ordem do infinito e da compreensão.


Relógio (revoltado): Insultas-me quando afirmas que és do infinito e da compreensão como se eu o não fôra também....

Tempo: E não és!. Parece-te que és, mas isso é só porque na fracção de mim que tu és, talvez nem sequer existas...., e, em qualquer caso não podes medir nada com o teu cronómetro. És um disfuncional!

Relógio: Agora, e repare que quando digo agora , está V. Majestade o Tempo, nos meus domínios, pelo que lhe digo que é simples trenguiçe o que afirma...

Tempo: Pois, meu pequeno relógio, será que não entendes que: primeiro, compreender não é medir, mais, compreender nunca é medir, caso contrário poderias medir a Vida a cada instante. Já reparaste que a nossa vida, ou seja a vida dos homens que dizes servir mas que afinal escravizas, é feita de acções que resultam de pensamentos que, sejam quais forem, correctos ou incorrectos, bons ou maus, são sempre revestidos de afectos de um de dois tipos? No fundo tudo o que os teus amos, os homens, têm, fazem ou são, reduz-se em essência a duas coisas: ao sentimento do agradável ou do desagradável!. Por isso, aquilo que é a essência dos teus amos (mas não teus senhores, porque esse é o meu campo) é a afectividade e mais nada. Pura afectividade.

Relógio: Mas que queres tu dizer, velho, com isso que soa a insinuação?

Cansado, o Tempo respirou fundo pela acção da brisa que parecia correr em seu socorro, e humedeceu a boca e saciou a pouca sede que os seus ancestrais lhe garantiriam que iria sentir, através dum golo da seiva que chupou do centro da terra.

Tempo: Vê tu bem. Por exemplo, se compreender fosse medir, como poderiam os teus doze azimutes que na realidade são vinte e quatro ( vês como em ti começa logo no teu umbigo a embustiçe aos teus amos, os homens? ) como poderias então medir o Amor? Ou a Felicidade?, ou todas as coisas que mais importam à essência do teu amo? Além de que quem julga não é capaz de compreender, porque quando compreendemos ficamos desarmados para julgar, pelo que tenho uma suspeita muito feia sobre ti: não andarás tu, relógio, armado em juiz dos teus?


Mas voltemos ao amor e à felicidade. Repara na tua insuficiência para medires o amor . Por exemplo, para medires o amor a Deus não chegas, e para medir a felicidade ainda menos. Pois como poderias tu medir o amor a Deus sendo que este - o mais egoísta dos amores - dos teus amos, reduz-se a pedir-lhe ( a Ele, Deus ) a vida Eterna. Amam-no em troca da vida eterna! E como medes tu com os teus vinte e quatro azimutes a eternidade da vida? Que presunção é essa tua, só armado de doze azimutes ou mesmo dos tais vinte e quatro?

E quanto à felicidade, esse outro afecto do agradável que é do género do amor, não entendes que é impossível medi-lo pela razão de ser também um saltitante e deslizante fenómeno?. Ora imagina, relógio, que estás perante o teu amo, o homem, num certo dia, ele prazenteiro, rico de dinheiro e posses, de rija e boa saúde e assim, mas....,surges tu, inopinadamente, e lhe comunicas na hora, que daí a momentos a sua mulher vai morrer atropelada, o filho ser internado por over--dose, descobre pelo seu médico que tem um cancro e que a empresa que administra abre falência...., percebes agora que, nesse instante, o teu amo já não vai querer saber de ti para nada porque só capta a infelicidade para sempre? Não vês que começamos a morrer no exacto instante em que nos comunicam que vamos morrer?

O relógio está furibundo, os frutos da árvore do Tempo caem no chão sacudidos por golpes surdos e inconstantes da mesma brisa de à pouco. Só que, agora, inconstantes e sem nenhum continum, como azimutes, simplesmente.

Relógio: Há bocado disseste em primeiro lugar. Ainda há segundo?

Tempo: Claro, pequeno ingénuo. Custa-me dizer-te isto ...,mas o facto é que tu não existes!. Calma, calma, não digas nada. Mas tu, relógio, és um fruto inventado por mim para enganar quem adora ser enganado ( repara que digo adorar que é a espasmodização mítica do amor, porque o homem só adora para exigir, logo para não amar ).


Sabes, às vezes divirto-me e crio do nada a mistificação do nada. Tu, relógio, és o meu melhor exemplo.

O tremor do relógio agrava-se.

Repara. Se eu , o Tempo, existo na infinidade do Cosmos, sem princípio nem fim, por entre buracos negros e nuvens de galáxias, então eu sou infinitamente grande. Logo, perante mim, e se eu sou infinitamente grande, tu, relógio,só podes ser pequeno. Mais: infinitamente pequeno!. Mas, como se o ponteiro dos teus azimutes corresse agora, segundo a segundo para trás, serias um fragmento do último segundo, depois um fragmento de um fragmento e assim por diante... ou seja, até ao nada. Face a mim, tu e os teus doze ou vinte e quatro azimutes também são um embuste: não existem.


Relógio: Que atraso de vida me saiste! Que de passado longínquo vens tu? Que nojo de arrogância ultramontana! Esmagado pela modernidade não passas dum velho caquético, digo-te eu que todos atestam ser eu up-to-date ou, avant-gard !. Que farias tu sem os simples de espírito, os atrasados de espírito, os poetas ou os filósofos - enfim todos esses inúteis que te prestam atenção, os únicos que pensam e te sentem de modo regular e sistemático?. É que todos os outros amos - a generalidade - vivem comigo e compram-me em ouro ou platina, batizam-me com nomes aristocráticos lindos como Patek-Philippe, Cartier Ballon ou Vacheron Constantin, e oferendam-me o cravejamento com pedras preciosas e correias de pele de crocodilo. Que outra prova necessitas tu do meu valôr? E os que triunfaram no B.C.P., no B.P.P., no Lenon Brothers, no Bear Stearns ou no Northern Rock que ultrapassaram a tormenta das falências mas que por sua muita arte permaneceram ricos, que triunfaram nos sítios para onde todos já hoje querem voltar, sítios honrados, prestigiados e poderosos, todos eles não passam a vida a correr atrás dos meus azimutes, como tu lhes chamas, não correm atrás do meu dia? Sei que já lhes ouviste dizer: "time is money " e olha que se referem ao tempo cronológico - o meu! - e não ao tempo vivido - o teu. Então, atreve-te agora a desdizer-me: eu, relógio, não presto para existir nem existo para prestar?

Aqui,o Tempo torceu-se todo através do tronco, fazendo como nunca ranger sofridamente a madeira de que era, e disse:

Tempo: Sabes, eu, às vezes não tenho a tua audácia de jovem relógio.... Em todo o caso talvez possamos conviver melhor se convergirmos em dois pontos, porque bem vez, no final és meu filho, fui eu que te criei. Proponho-te assim, que aceites como má, a fórmula:

Tempo (vivido ) é uso, enquanto relógio ( tempo cronológico ) é usura.


Em contrapartida, eu , o Tempo, aceito de vez aquilo que já venho fazendo com o esforço que resulta do estorvo da velhice.

( Sou velho como eu próprio, sou Velho como o Tempo).

e que é: tu, relógio, és aquele meu infeliz agente que cria os problemas, para eu, o Tempo (vivido), os resolver. Que tal, aceitas?


Fez-se o silêncio da brisa que pára ao amanhecer.


Relógio: És mesmo parvo e de espinhela curvada como todos os velhos já pequenos, ó Tempo!. Tu não tens actividade para fazer nada, e fazer, fazer sempre, é o verbo mais conjugado do nosso tempo. Nem tens forças para resolver nada. Se eu, num episódio de loucura, aceitasse a tua proposta, o esforço era todo meu...

Tempo: Toda a vida tenho feito o que tu e os teus amos não alcançam vêr, embora eles o sintam. Como? - perguntas tu. Através da infinita paciência que tenho usado para com os teus amos. É que dou-lhes sempre mais uma hipótese, sempre mais uma e mais uma,...e eles nem assim deixam de me odiar.

Relógio: Resolver,...dar hipóteses? Como é isso?

Tempo: Pois ainda não reparaste que a minha paciência corre em socorro dos homenes e que quando eles exorbitam nas acções, hesitam nas decisões, eu dou-lhes sempre de mim: mais Tempo! E ainda não reparaste que mesmo que os homens decidam que não vão decidir nada, e dizem eles que "deixam as coisas correr", eu, o Tempo me encarrego de as resolver duma forma ou doutra mas geralmente a seu contento? E eles dizem como se isso não me custasse ouvir: "porque as coisas resolvem-se por si!". Por si não, por mim!


Cai na terra húmida da manhã, a despontar, um fruto verde , de raiva, certamente.


Relógio:Não sei, não posso anular-me a mim mesmo...Não posso deitar-me ao lixo.

Tempo:Pois não, mas pode o teu amo, o homem. Retirar-te do pulso e dar-te férias. E a ele também. E com isso, começar a longa tarefa de te dar a liberdade deixando tu de seres o seu Tirano. Lembra-te sempre : é so retirar-te do pulso para que o pulso sinta a Vida!

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