segunda-feira, 26 de julho de 2010

O MEU DIA - O DIA DOS AVÓS !

Sempre quis ter o Meu Dia. Sim, porque ele há o dia de isto e daquilo, e também daqueloutro. Mas nunca houve o dia do Zé vá-se lá saber porquê.

Mas eis que alguma alma iluminada percorrendo os curiosos caminhos da Net descobre que o Dia 26 de Julho é o Dia dos Avós ! É o meu dia, já tenho dia, já cá canta!
Reza a lenda que que no Ano primeiro A.C., Ana e Joaquim ( Santa Ana e São Joaquim para a liturgia católica ) eram um belo casal idoso que não conseguia ter filhos. Vai daí, um dia, sim porque nestas coisas há sempre um dia, aparece-lhes um Anjo a anunciar-lhes que haveriam de ter uma menina a quem poriam o nome de Maria e seria amãe de Jesus. Assim foi, e Ana e Joaquim vieram a ser os avós de JESUS e santa Ana a padroeira das grávidas e das mulheres que desejam ter filhos, que , como se sabe, é uma espécie em vias de extinção e muito necessitada  de ser salva.

O meu Jesus chama-se João e foi para mim uma epifania absoluta. Ele, na altura do seu ano e meio ainda não sabe mas já paira na auréola mística do avô, e provavelmente dos outros avós, como o seu mini jesus. Donde o meu próximo Natal, mesmo que sem a sua presença física, vai ser com ele no centro das minhas atenções porque é ele o verdadeiro menino jesus. Em conformidade vou falar-lhe do que importa: vou recordar-lhe o que mais ninguém está apto a recordar-lhe - a sua raíz, os seus trisavós.

Na verdade só dois, que os outros já tinham morrido e só os conheci por ouvir dizer. Mas posso falar-lhe do tri-avô Abel ( meu avô ) e da tri-avó Aurora ( minha avó ) para ele compreender que aquela estranheza que sente em relação aos velhos avós já por estes foi sentida em relação aos seus.

O meu avô Abel morreu de enfarte do miocárdio em Cinfães, numa altura em que aquela terra ainda se escrevia Sinfães! Morreu numa das suas viagens pelas terras que eram suas e que fazia a cavalo. Levantava-se diariamente às quatro da matina, arreava um dos cavalos e às cinco já tinha devorado algumas léguas. Levava com ele uma bucha para o dia e uma tesoura de poda e quando chegava às tapadas punha-se a aparar pinheiros para estes crescerem só para o céu, para onde ele agora está. Acho que foi de tanto apontar para lá,  para o Céu, que um dia um anjo o veio convidar a partir e ele aceitou. Sim, porque usando nunca dizer Não, nunca fazia o que não queria. Às vezes levava-me comigo em pequeninas viagens , cada um no seu cavalo que ele me deu, e depois tirou, quando me viu a fazer treinos equestres a subir, montado, e a descer a escadaria da entrada da quinta no Douro.
Um dia, em mais um dia de Natal luminoso, tinha eu os meus 16 anos, fomos logo de manhã até à foz do Douro e a certa altura passou no rio uma lancha muito rápida . Ficamos ambos a olhá-la , invejosos. E o meu avô, que chegara a ter cinco barcos rabelos - um dos quais trouxera a minha mãe e um irmão para o Porto , ainda não havia estrada decente que não o rio, para iniciarem os estudos liceais - ficou vidrado na lancha e disse-me : - " quando a barragem ( do Carrapatelo ) estiver feita  havemos de ter um!"
É claro que contei isto à minha mãe e às irmãs que acharam que se não era eu que estava doido, era o pai delas. E foi neste preciso momento que deve ter ocorido uma das coisas mais importantes que moldaram a minha vida. É que se as filhas do meu avô não acreditavam no que o meu avô me dizia , era porque eu era o eleito do meu avô. A pessoa que  ele elegera para cúmplice dos sonhos que a sua racionalidade não permitia publicitar. EU ERA O ELEITO dentre os vinte e tal netos. E se a " autoridade" soberana do meu avô me tinha escolhido entre os demais  era porque ELE SABIA : Eu era único!
Foi assim que me fui tornando uma pessoa afirmativa, com elevada auto-estima que às vezes roça a arrogância, mas é assim mesmo, quando um avô nos reconhece e elege como bons , essa marca fica para o resto da nossa vida porque não há maior autoridade que a do nosso avô. Ele tem o poder e simultaneamente a autoridade que se nos apega à pele para o resto da nossa vida. Sobretudo quando é o avô materno!
Pouca gente sabe isto, João, meu neto, mas o apego, a ligação que os netos têm aos avós é geralmente mais forte aos avós maternos que aos paternos, porque a mãe com o exercício do seu tropismo e influência natural  "puxa" os filhos para os pais dela....
Por tudo isto, e porque o avô Abel era o meu único avô e porque era o materno, eu fiquei assim: se ele dizia que eu era o maior é porque eu era o maior.
De resto a sua história de vida ajudava à autoridade : ele tinha sido "despachado" pelo pai dele, aos 10 anos!, para o Brasil, sozinho num barco rabelo até ao Porto. Aí perguntara onde ficava Leixões e para lá foi a pé. Em Leixões tomou o vapôr que o levou até ao Rio de Janeiro onde, como Ferreira de Castro escreve no romance A  Selva , entregou a carta de chamada de um qualquer conhecido do meu bisavô e, nessa altura passou pelo inferno de Dante, e foi tudo,particularmente marçano duma mercearia, longos anos dormindo em cima dos sacos de batatas, até gritar o grito do Ipiranga, mandar o patrão à merda e voltar a Portugal para casar com a avó Aurora.

A minha avó Aurora era a mulher fina da freguesia. Tinha a terceira classe feita e era a única. Os pais gozavam da fama de abastados e ela prendeu-se de amores com aquele tipo do Brasil que ela mal conhecia a não ser por carta às escondidas dos pais, e afirmou-lhes o seu direito de casar com quem queria. 
A minha avó Aurora era senhora de muitas terras e os pais dela não compreendiam porque haveria ela de juntar os pucarinhos com um tipo dos brasis que tinha um pai que o obrigara a emigrar apesar de há duas gerações ganharem bom dinheiro com o negócio da madeira. Aliás o primeiro ( Couto ) que por lá aparecera era até um tipo da roda que se sabia vagamente que era fugido da Áustria e da guerra entre a Áustria e a Prússia ( ele não, mas os pais dele ). 
Por isso foi um grande estorvo aquele casamento. Mas ao pragmatismo do meu avô Abel ajuntava agora a minha avó Aurora um sentimento mais que moral da ética. Seguramente ela nunca ouviu falar de Kant mas a ética kantiana do Dever era nela uma impressão genética. Por isso fez o que tinha a fazer e em poucos anos , como a mulher da casa (que de facto mandava no marido), foram construindo a casa da Arroteia que até tinha uma tasca por baixo para desenrrascar umas coroas no início do casamento; casa que depois foi minha muitos anos e onde os meus filhos passaram longos estadios.   Quando finalmente acharam que os copos e as madeiras vendidas  eram suficientes, construiram a Casa Baixa que hoje é do meu tio Carlos;  e quando já se podiam dizer de  remediados mandaram construir a Casa Alta,  uma casa abrasileirada, a primeira no concelho a ter quarto de banho e que era a modos que uma torre a espaventar o esplendor da riqueza: Contradições próprias dos portugueses!
Mas deixaram para a posteridade a casa que é a única casa classificada do Concelho de Cinfães e é hoje do meu tio João.
O importante de toda esta estória é que a minha avó Aurora deve ter crescido na maturação da sua feminilidade e foi com ela que ainda pude aprender o lado ascético e irónico da vida. Sabes, meu neto João, quando um dia eu estava de férias na Casa Alta a brincar com um barquinho (feito pelas minhas tias a partir duma cana de canavial ) numa levada do ribeiro que passava à porta da cozinha, ia ouvindo o para-aqui-e-para-ali duma mulher que trazia à minha avó Aurora,  já depois de muita conversa a preparar o terreno, qualquer coisa como isto:"- E a propósito- dizia a corva - vi ontem o senhor Abel a entrar no palheiro da Eira onde a carlinha do Bacêlo estava a trabalhar e esteve lá um bom tempão a ajudar a rapariga!.... E a minha avó Aurora: "-E a sua filha anda melhor dos joanetes?".
Um dia - e ainda há pessoas que acham que um puto fiúza de cinco anos não percebe as coisas - entrou um caseiro capaz de matar uma horda de vizinhos porque não lhe cumpriam a hora da levada. A minha avó Aurora que eu sempre conheci sentada com uma manta pelas pernas, atentou no homem, mandou a uma das filhas que lhe servisse uma malga vidrada em branco ( que eu tenho ) de tinto, e disse em voz baixa para os filhos que viviam no Porto e estavam lá de férias em Agosto:"-Ouvi, mais vale um mau acordo que um bom litígio". E a minha mãe e os meus tios que começavam a ferver com as acusações do homem lá se foram acalmando e ele saiu da cozinha para a vida com outro rumo no coração. Era assim a minha avó Aurora , cheia de máximas que reduziam o mundo a uma frase e acertavam sempre.

Por tudo isto, e sobretudo como expliquei acima, por os avós do lado da nossa mãe terem tendencia a serem para nós muito mais importantes que os paternos, e correndo eu o risco de nunca vir a ter possibilidades de te contar estas coisas que são o húmus da nossa vida, faço questão meu querido neto João, de te ir deixando algumas notas do que és. O meu menino Jesus de todos os próximios Natais.  


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