quinta-feira, 26 de agosto de 2010

SER romano

Ser romano?
José Cutileiro (www.expresso.pt)
0:00 Sexta feira, 27 de Agosto de 2010

Em Roma sê romano" foi um preceito de subserviência: os romanos eram tão mais poderosos do que os povos que dominavam que na sua terra era melhor fingir que se era romano também. Não se tratava de uma regra geral de comportamento do hóspede para com o dono da casa (ninguém diria, por exemplo, "Em Évora - Liberatilas Julia - sê eborense"), mas sim de variante oportunista de um outro preceito, comum à arraia miúda do mundo inteiro: "O que é preciso é a gente estar bem com a lei que há". Governar, de resto, é em grande parte impedir que essa disposição prudente desapareça; por isso a União Europeia ainda hoje gasta mais de 80% do seu orçamento subsidiando agricultura e regiões pobres dos Estados-membros para ajudar a prevenir revoltas do campo contra a cidade e do pobre contra o rico, as quais - juntamente com razias disparadas pelo grito "O meu Deus é melhor que o teu!" - tantas vezes ensanguentaram a Europa.

Mas Roma, física, política e simbólica, existia - como existiam romanos. E depois dela vieram Madrid e Viena, Paris, em dois espasmos violentos Berlim, Londres, a partir da Primeira Guerra Mundial Washington também - e a partir da Segunda, Washington acima de todas as outras - que se foram empoleirando com seus cantos de galo a acordarem o mundo. Agora é diferente. A última Roma (que já não era europeia) começou a enfraquecer a olhos vistos e entre os novos poderes que crescem não se vê quem tenha ombros para o manto. Esta desordem mundial vem juntar-se a outra, doméstica. Salvo em casos limitados e bem definidos - freiras, frades, castrati, janissários - durante milénios educar crianças era treinar o menino para ser como o pai e a menina para ser como a mãe. Nos últimos séculos revoluções industriais e políticas trouxeram ascensões sociais que deram formas diferentes ao percurso mas o eixo moral permanecia. Hoje, porém, quando pais e, no mundo modernizado, educadores, não sabem bem quem eles próprios são - ou julgam que sabem mas vão mudando de ideias - é mais difícil descobrir primeiro, e respeitar depois, um centro que segure o resto. Em casa, no bairro, na nação, no mundo, deixou de haver romanos para imitar.

As coisas são o que são. Mas tal como Catão no Senado queria sempre arrasar Cartago, assim eu volto a dizer aqui: os europeus têm força que os poderá salvar do pior, se souberem usá-la juntos. Deu-se um bom passo há dias. Jornalistas lembraram ao primeiro embaixador da União Europeia em Washington (os predecessores eram só chefes da delegação da Comissão) a dúvida de Kissinger - Se eu quiser telefonar para a Europa que número ligo? - e perguntaram como era depois do Tratado de Lisboa. "Em Washington liga o meu", respondeu o embaixador. Ingleses eurofóbicos e outros nacionalistas exaltados protestaram logo que os interesses das suas pátrias "não eram os de Bruxelas" mas a marca ficou posta. O futuro dos europeus ou passará por aí - ou por desgraças penosas de ver. As coisas são o que são.

jpc@ias.edu

Nota: José Cutileiro escreve de acordo com a antiga ortografia

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