14:50 (JPP)
(este notável texto de José Pacheco Pereira a fazer o que ele faz bem que é Historiar, serve de exemplo ao ensaio , neste blog publicado, sobre a intelegência das ´Nações e o seu desenvolvimento. Neste texto é narrada a fase de "cultura" da cidade de Esmirna e depois a sua fase ( letal e fatal ) de civilização para usar os termos de Spengler - mostrando como é na fase de declíneo ou civilizacional, mas já não de cultura, que uma Nação implode ou se suicida- neste caso~é a maioria grega que, ufana chama os ingleses para fazendo frente a quem nunca os tinha ameaçado - os turcos -, realmente se suicidarem! )
NUNCA É TARDE PARA APRENDER: DE REPENTE
Giles Milton, Paradise Lost: Smyrna 1922 – The Destruction of Islam's City of Tolerance, Sceptre, 2009.
De repente, em cinco ou seis anos, depois de séculos e séculos, todo um mundo rico, estruturado, "civilizado", cosmopolita, estável pelo menos à superfície, cai para os maiores extremos da barbárie. Se há uma lição da história é só essa: nada está garantido, tudo é precário. Esmirna (a actual Izmir) era uma cidade opulenta, com todos os luxos ocidentais, hotéis, ópera, um porto florescente, indústrias exportadoras de têxteis e frutas, armazéns, fábricas, escolas internacionais, igrejas, missões e hospitais. Muitos estrangeiros lá viviam, americanos, ingleses, italianos, numa cidade que era única num aspecto e que marcou o seu destino trágico: Esmirna era maioritariamente cristã. A cidade e a costa à sua volta eram gregas, e, na cidade, gregos e arménios eram mais do que os turcos. No império otomano, como se passava em Salónica, os turcos detinham o poder político e eram uma elite militar que beneficiava de um estatuto de superioridade, principalmente fiscal. Mas as outras comunidades viviam com liberdade, debaixo do controlo das suas próprias hierarquias religiosas. Acresce que Esmirna tinha como governador turco um genuíno tolerante, Rhamy Bey, que apreciava o cosmopolitismo da sua cidade e que convivia com facilidade com todas as comunidades. Na cidade, a elite era "levantina", constituída por famílias estrangeiras, inglesas, francesas e italianas, que aí viviam nalguns casos há trezentos anos, fiéis aos seus países de origem e à cidade de Esmirna. Essa comunidade detinha o controlo dos negócios lucrativos da cidade, empregava gregos e turcos nas suas fábricas e vivia na opulência, em grandes mansões com famílias extensivas, que estudavam em Inglaterra e depois regressavam a Esmirna para continuar os negócios dos seus pais e tios, sob a mão de ferro de um familiar mais velho, homem ou mulher. Parecia o Porto, onde uma antiga comunidade inglesa, vivia assim.
Até um dia. A entrada do Império otomano na guerra ao lado dos alemães começou a fragilizar uma comunidade estrangeira que estava maioritariamente do lado anglo-francês. Mas aqui Rhamy Bey ainda conseguiu proteger a sua cidade, no limite da traição. Os ingleses, a quem ele se ofereceu na prática, maltrataram-no e só os seus amigos levantinos o ajudaram. Mas foram os gregos (como o apoio de Lloyd George) que ditaram o fim trágico de Esmirna. Venizelos, primeiro-ministro grego, debaixo da bandeira da Megali Idea, a tentativa de reconstituir o Império bizantino na Anatólia, contando com as comunidades gregas que aí viviam há milénios, enviou tropas para Esmirna ocupando a cidade, exercendo violências contra os turcos e penetrando no interior até perto de Angora (Ankara). A entrada dos gregos não foi particularmente bem recebida pela comunidade levantina, que se começou a aperceber do desastre, mas foi saudada com entusiasmo pelos gregos de Esmirna e das aldeias limítrofes. Só que não contaram com a resposta nacionalista turca, na pessoa de Mustafá Kemal, mais tarde conhecido como Ataturk. Kemal venceu os gregos e caminhou em direcção a Esmirna, que os turcos não esqueciam ser a Gavur Izmir, a "Esmirna dos infiéis". O que se passou a seguir foi um dos grandes massacres do século XX: armenos e gregos foram massacrados em grande número, as mulheres violadas em massa, culminando no incêndio deliberado de quase toda a cidade menos o quarteirão turco, o mais pobre. E a gloriosa Esmirna, hotéis, cafés, restaurantes, consulados ocidentais, igrejas, mosteiros, escolas, hospitais, casas comuns e de luxo, armazéns e fábricas, ardeu durante vários dias. Uma população calculada em 500.000 pessoas, estrangeiros, gregos e arménios acumulou-se no cais de Esmirna entre o fogo, os turcos e o mar, morrendo aos milhares. Um testemunho da época descreve o mar pejado de cadáveres, no meio dos quais nadava um rapaz turco a tentar retirar tudo o que era valioso dos corpos. Em frente, não fazendo nada, uma esquadrilha de navios de guerra ingleses, americanos, italianos e outros, que assistem ao que se passa à sua frente sem se mexer. Quando começaram a aceitar refugiados já era tarde para salvar um número significativo de pessoas. Mesmo os gregos só se mexeram por iniciativa de um missionário americano que praticamente se comportou como se fosse almirante da frota grega e obrigou os capitães gregos a irem a Esmirna salvar os seus.
De repente, tudo mudou. Uma realidade histórica e étnica com milhares de anos, a dos gregos da Jónia, e dos enclaves cristãos no Império Otomano, acabou em meia dúzia de anos e em meia dúzia de dias. A nova Turquia nacionalista partia com uma limpeza étnica que deixava apenas um "inimigo interior "significativo: os curdos. E a Megali Idea, o mito nacionalista imperial dos gregos, ficava pelo caminho. Pelo caminho também ficou uma cidade cosmopolita, moderna, "civilizada", tolerante, que a actual Izmir em nada revela. Como Hitler fez com as comunidades judaicas do Leste, a geografia humana mudou radicalmente. Infelizmente, isto é que é a história.
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