Crónicas da Renascença: O Bispo de Roma em terras de Sua Majestade*
Com a beatificação do Cardeal Newman, Bento XVI terminou anteontem a sua visita ao Reino Unido. Uma visita difícil, não apenas pelo momento (os escândalos de pedofilia, a que o Papa se referiu duramente na viagem de avião, e os protestos vários), mas sobretudo pela história. A Inglaterra visitada pelo Papa construiu a sua identidade moderna, talvez mais do que qualquer outra nação da Europa, no conflito com os "papistas". Henrique VIII cortou com o passado católico do reino, pôs-se à cabeça da Igreja inglesa e, por fim, cortou a cabeça ao ex-chanceler Thomas More (sim, o da Utopia) e aos poucos que se opuseram a essa peculiar forma de união entre a Igreja e o Estado desde então conhecida por anglicanismo - união que ainda se mantém, apesar da secularização da sociedade inglesa. No tempo em que Shakespeare escrevia, Isabel I resistiu à invasão espanhola da Invencível Armada, campeã da ortodoxia papal. A Gloriosa Revolução de 1688 foi, no fundo, uma guerra civil em que o Parlamento derrubou um rei, Jaime II, suspeito de querer restaurar o catolicismo. Até ao século XIX, os católicos estavam legalmente impedidos de ser eleitos para a Câmara dos Comuns e, portanto, para o Governo. Mesmo a Home Rule, o estatuto de autonomia da Irlanda anterior à independência do século XX, foi apodada por muitos de Rome Rule - a lei de Roma. A emigração de hordas de irlandeses miseráveis para as cidades industriais de Inglaterra e da Escócia também não ajudou a melhorar a imagem do catolicismo, associado às classes baixas e incultas. E, antes dos atentados da Al Qaeda, o único terrorismo que a ilha conheceu, o do IRA, proclamava à bomba a identidade católica. Em suma, compreende-se que haja entre os súbditos de Sua Majestade um ódio histórico ao Papa, símbolo de quase tudo o que combateram nos últimos quinhentos anos.
Bento XVI fez algumas alusões subtis a este passado, homenageando tanto a resistência britânica ao nazismo como a raiz cristã da Magna Carta, que garantiu as liberdades da Igreja face à coroa, ou visitando a Rainha em Edimburgo antes do Arcebispo de Cantuária, forma airosa de dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, ou discursando no local do martírio de Thomas More em Londres perante alguns dos seus sucessores no cargo, entre os quais Margaret Thatcher e Tony Blair (by the way, um recente convertido ao catolicismo). Mas a maior dificuldade da visita não estava na história turbulenta da ilha: estava nas actuais relações entre as Igrejas católica e anglicana, aspecto que escapou por completo aos jornalistas.
Convém recordar que o anglicanismo vive hoje uma crise gravíssima. A decisão de ordenar mulheres e homossexuais e de aceitar o casamento gay, tomada pelas igrejas de Inglaterra, Canadá, Estados Unidos e Austrália, provocou uma ameaça de cisma por parte dos asiáticos e dos africanos e a virtual cisão da fé anglicana em dois blocos étnicos. Mais do que isso, milhares de fiéis ingleses e muitos pastores, descontentes com mudanças tão radicais, pediram a admissão na Igreja de Roma, criando um problema canónico sem precedentes. Os bispos do Reino Unido e o Cardeal Walter Kaspert, responsável pelo diálogo ecuménico no Vaticano, temiam que esta vaga de conversões causasse algum incómodo entre os protestantes, além de naturais problemas de integração na comunidade católica. Há um ano, porém, o Papa surpreendeu tudo e todos ao criar uma estrutura autónoma, semelhante aos ordinariatos castrenses, exclusivamente para acolher os convertidos do anglicanismo, permitindo-lhes manter o seu próprio clero e a sua própria liturgia.
Foi uma verdadeira revolução e ninguém sabe o que vai acontecer agora. A transferência de fiéis continuará? O êxodo dos conservadores, em regra mais praticantes e comprometidos, reduzirá o anglicanismo à irrelevância? (Uma pergunta que paradoxalmente levou Bento XVI a defender, por várias vezes, a presença da religião no espaço público.) Do ponto de vista político, justifica-se que um país cada vez mais secularizado e multicultural mantenha a confessionalidade do Estado? Se isso mudar, muda também o papel da rainha como chefe da Igreja anglicana? E nos casos em que paróquias inteiras mudam de obediência, as igrejas (bens públicos, note-se) voltarão a ser propriedade da Igreja católica cinco séculos depois?
É curioso que o último acto da visita papal, a beatificação de Newman em Birmingham, possa ser visto como uma resposta a estas questões. John Henry Newman foi capelão universitário, fellow do Oriel College e fundador do Movimento de Oxford, antes de se converter ao catolicismo em 1845. A conversão, um choque para os amigos e conhecidos, provocou o fim da promissora carreira nos establishment anglicano e o início da eterna desconfiança da hierarquia católica, antes de ser nomeado cardeal por Leão XIII (também aqui um visionário) em reconhecimento pela sua obra teológica e pelo seu trabalho pastoral. Com efeito, os textos de Newman sobre historicidade da Igreja, razão e fé, autoridade eclesiástica e liberdade de consciência, escritos a propósito de algumas das mais acesas polémicas doutrinais da época, influenciariam profundamente Chesterton, Tolkien, C. S. Lewis, o Vaticano II e um jovem teólogo presente no concílio chamado Joseph Ratzinger. Ao deslocar-se a solo inglês para beatificar Newman, quebrando mais uma vez o protocolo, esse jovem teólogo, hoje Papa, confirmou a definição irónica de Oscar Wilde: a Igreja católica é só para santos e pecadores. "For respectable people, the Anglican Church will do".
NOTA de csp : este post sobre a visita papal ao reino unido retirado com a devida liçença do blog " O Cachimbo de Magritte " e da autoria do jornalista da Renascença Pedro Picoito, DISPENSA-ME de escrever sobre o assunto como eu tinha decidido. Primeiro porque está completo e segundo porque está muitíssimo bem escrito. Num país onde há jornalistas especializados para tudo até motorizadas, não entendia porque é que não havia outros especializados na coisa mais nobre que pode haver na nossa vida: a nossa religião. Pelos vistos estava enganado: já há.
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