sábado, 6 de fevereiro de 2010

SOBRE A POLIGAMIA E A CIENCIA ( e porque não o casamento? )

Domingo, Janeiro 31, 2010


Uma reflexão masculina heterodoxa da história da monogamia :-)

Hoje vou mudar de assunto e partilhar convosco uma conjectura que sei ser discutível e de que eu próprio me rio, mas contra a qual na verdade ainda não encontrei argumentos científicos. Quem quiser divertir-se, que se adiante. De qualquer modo e antes de prosseguirem a leitura, repito que o que se segue não pretende ser inteiramente ciência, mas apenas ilustrar galhofeiramente como a Ciência não é neutra.



Como muitos saberão, há muitos investigadores que se têm interessado pelo estudo evolutivo de alguns marcadores genéticos, em particular dos haplótipos, umas combinações de alelos ou genes com variantes que determinam, por exemplo, as diferentes cores de olhos ou de cabelo entre indivíduos. É a partir dessas investigações que, por exemplo, se chega à conclusão de uma origem única para a nossa espécie no corno de África, de onde aliás partiram várias vagas de humanos, a última das quais, a nossa (Homo Sapiens), há cerca de 40-50 mil anos. Estudos similares na linguística chegam às mesmas conclusões, o que não é de surpreender visto os dialectos se desenvolverem em comunidades mais ou menos fechadas que tendem naturalmente também para a afinidade genética.

Basicamente esta linha de pensamento considera que numa dada comunidade de onde se separe um sub-conjunto de indivíduos, este sub-conjunto é portador de apenas parte da diversidade genética do grupo original, de modo que à medida que vai ocorrendo a "sub-especiação" a homogeneidade genética dos novos sub-grupos aumenta. Por conseguinte, os grupos com maior diversidade genética serão os mais antigos, e os com menor os mais recentes.

Como noutras áreas da Ciência, porém, esta teoria (ou da origem única) é controversa e tem a oposição dos que defendem uma origem multi-regional da espécie, com múltiplos cruzamentos ao longo do tempo. Porém, à medida que a informática e o estudo do genoma permite o tratamento de volumes cada vez maiores de dados genéticos de diferentes populações, a teoria da origem única tem vindo a ganhar terreno enfraquecendo os argumentos da teoria da origem múltipla. As consequências ideológicas destas duas teorias permitem compreender porque é tão acesa a luta entre elas: a teoria da origem múltipla aponta para uma natureza humana originalmente boa e tolerante às diferenças, mais tarde pervertida pelas estruturas sociais da civilização, enquanto a teoria da origem única aponta para a supremacia de uma única linhagem original, sem cruzamentos entre sub-espécies substancialmente diferentes e com a eliminação das menos aptas (não forçosamente pela guerra, entenda-se).

Um exemplo típico desta polémica é a que foi despoletada pela descoberta em 1998 do nosso célebre "menino de Lapedo", que o arqueólogo João Zilhão e outros defendem constituir uma prova do cruzamento de Neanderthais com Homo Sapiens, há uns 25 mil anos (a península ibérica foi o último lugar onde viveram Neanderthais, até há 25-30 mil anos), mas outros argumentam ser impossível ainda haver traços morfológicos de Neanderthal muitas gerações depois desta sub-espécie humana ter desaparecido. Um projecto de sequenciação do Genoma do Neanderthal, entretanto, tem vindo a reforçar a hipótese de que não haverá, de facto, traços genéticos dessa sub-espécie na nossa. Note-se que, segundo a teoria da origem única, terão havido várias vagas migratórias originais de África de espécies humanas, mas só a última vingou. A nossa, obviamente.

Muitos destes estudos centram-se no ADN mitocondrial, que quase só se propaga por via materna, ou no do cromossa Y, que só se propaga por via paterna, embora em ambos se usem modelos de "relógios moleculares" para temporizar (estatisticamente) as mutações e, retrospectivamente, origens ancestrais das populações.



Entretanto, um dado assente é que o advento da agricultura e, com ela, a "1ª vaga" de explosão demográfica humana (a 2ª ocorreu com a industrialização e a 3ª estará em curso com a revolução do conhecimento), deu-se no Próximo Oriente e propagou-se daí pela Europa. A "1ª vaga" correspondeu à chegada do Neolítico e com ela à superação do Paleolítico, dominado pela caça e pela apanha do que a Natureza proporcionasse, e ocorreu há cerca de 10 mil anos, chegando à ponta da Europa mais afastada do Médio Oriente, a Irlanda, há uns 6 mil anos (e cá há uns 8 mil). Muito antes disto e praticamente logo que aparecera, a nossa espécie dedicara-se a realizar "crimes contra a biodiversidade" do planeta, depradando até à extinção muitas das grandes espécies que encontrou, dos mamutes norte-americanos aos cangurus gigantes da Austrália.

Se a propagação da 1ª vaga foi por via cultural (conversa e aprendizagem) ou por migrações (deslocação pessoal) tem sido uma questão em aberto entre os investigadores.



Ora acaba de ser publicado um estudo envolvendo um largo conjunto de investigadores europeus de diferentes países que demonstra que há uma extrema coincidência entre a conhecida propagação da agricultura na Europa, de Sudeste para Noroeste, e a presença de um marcador específico no cromossa Y dos homens - e essa coincidência é no sentido de a maioria dos homens europeus, cerca de 80%, descenderem dos mesmos "avôs", ou antepassados masculinos. O que não se verifica quanto aos marcadores genéticos de origem feminina. Estes novos resultados parecem corrigir as conclusões obtidas há uma década e que apontavam para uma maior diversidade de origens masculinas, embora já então fosse evidente elas não coincidirem com as femininas.

Quer isto dizer que com o advento da agricultura, foram os homens agrícolas que predominantemente se reproduziram, com mulheres locais (paleolíticas). O que aponta para a regra da poligamia ter acompanhado a 1ª vaga.

Aliás, outros estudos genéticos recentes do mesmo género também já apontavam para o facto de sermos todos descendentes de um número reduzido de homens, muito menor que do número de mulheres.

Estas conclusões parecem dar razão à opinião de um amigo meu, segundo a qual há uma alienação na busca masculina de sucesso social e riqueza como fim último da existência, visto o verdadeiro fim natural desta ser o da posse do maior número possível de mulheres, com vista à maximização da reprodução dos genes masculinos. E, invocando o exemplo de muitas espécies animais, nota ele que verificando-se aí a existência de machos dominantes que após acesa competição logram o "the winner takes it all", isso é a forma como a Natureza procede ao apuramento dos genes que garantem a adaptação evolutiva permanente ao ambiente - por via da competição entre os machos e pela reprodução apenas dos dominantes. Aliás, do ponto da vista da Natureza os machos não teriam mesmo mais nenhum papel.

Embora admita que o cromossoma Y é o que mais mutações tem sofrido e que será predominantemente através dele que a evolução genética se processa nos mamíferos, a mim sempre me pareceu que esta teoria dos machos dominantes e polígamos era uma generalização abusiva das práticas dos herbívoros, que vivem, de facto, em grandes grupos (de fêmas, crias, e um macho dominante). Nos carnívoros, porém, que são muito mais inteligentes que os herbívoros, as práticas "familiares" são diferentes. Há só uma regra comum: os machos não toleram crias alheias, o que cria um curioso fundamento para o regime "familiar" dos leões, por exemplo: as leoas acarinham o seu leão macho porque é ele que lhes protege as crias contra os outros machos de fora da "família" - mesmo que esse macho tenha ganho o seu estatuto matando as crias anteriores da leoa! Mas, nos carnívoros, as coisas são de facto diferentes, e mesmo nas poucas espécies que constituem grandes grupos, como as dos eficazes canídeos, ou há também uma fêmea dominante que também mata as crias das outras fêmeas e forma um casal real, como nos lobos, ou são mesmo as fêmas que são dominantes, como nas temíveis hienas.

Seja como for, a revelação de que o número dos nossos antepassados masculinos é muito menor que que o dos femininos parece apontar para a predominância do paradigma sexual dos chimpanzés sobre o dos bonoboos na nossa ancestralidade, o que para quem se imagina um macho dominante nesses tempos antigos pode parecer interessante, mas a quem eu notaria que, probabilisticamente, se fossem machos transportados no tempo para essa antiguidade seria bastante mais provável, pela simples lógica dos números, que pertencessem ao maioritário conjunto dos excluídos, e não ao da minoria dominante. Uma lógica similar à que se pode aplicar às bonitas histórias sobre príncipes e cavaleiros antigos e em que gostamos de nos imaginar a viver como eles, mas em que a simples lógica dos números nos indica ser muito mais provável sermos os seus miseráveis criados ou servos da gleba, se fossemos transportados para tais cenários.

E vem isto tudo a propósito do advento da monogamia, ocorrida há uns 5 mil anos, depois de bem assente a revolução neolítica e quando as cidades se erigiram em civilizações, com Estado, leis e escrita. Monogamia tratada legislativamente em detalhe no Código de Hamurabi, regulada nos 10 Mandamentos judaicos e imposta, claro, pelo cristianismo.



E a conjectura que me traz aqui é esta: hoje, que graças à invenção da pílula e ao facto da 3ª vaga ser partilhada pelas mulheres, temos vindo a viver uma nova revolução sexual, a das mulheres, há muito quem olhe para a monogamia tradicional como um ferrolho da liberdade. Porém, a monogamia veio trazer a cada homem o direito de ter uma mulher, quando antes essa propriedade seria exclusiva de chefes e reis, que as tinham a todas, a julgar pela descendência que deixaram (incluindo nós).



Ou seja: a monogamia, longe de ter sido um ferrolho à liberdade pessoal masculina, foi de facto uma grande evolução democrática e uma importante limitação do poder dos chefes e reis.

Para os homens, claro.

Para as mulheres, a democratização sexual teria que esperar mais 5 mil anos e ainda não foi aceite pelos muçulmanos, razão maior da guerra mundial em curso e apesar de uma amiga minha defender, talvez com algum exagero, que "no fundo de cada homem há sempre um muçulmano recalcado"... :-)

Publicada por Pinto de Sá em 11:59 PM 9 comentários Hiperligações para esta mensagem

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