Agora que estamos na aproximação à Quaresma, recordo com nostalgia os tempos em que a minha mãe organizava o jantar Pascal para mais de dez "cruzes" que saíam às ruas da freguesia da Sé, no Porto.
Recordo o cheiro cortante dos limões e o acre dos alhos e o doce do loureiro que temperavam durante dois dias o anho, melhor os numerosos anhos, para o repasto do senhor abade, mais o padre-coadjuctor, mais os seminaristas que davam as cruzes aos nossos lábios ( sedentos das amendoas de licôr da confeitaria Cunha), mais umas dezenas de pessoas importantes como o presidente da junta e às vezes - não poucas - o senhor arcebispo-bispo do meu Porto.
Recordo a chegada das ovelhas e dos cabritos que trazidos nos barcos rabelos que atracavam num cais mesmo por baixo do tabuleiro inferior da ponte D.Luís que já não existe, vindos do Douro que tudo produzia e tudo fazia desaguar na cidade para a sua sobrevivência.
E como não havia matadouros e nenhum visionário sonhava com a ASAE, lembro-me bem da festa da degola dos animais como uma atitude quase sagrada e que acontecia em muitos pontos da cidade, designadamente nos terrenos da minha casa mesmo sobre o rio, onde eram mortos às dezenas. A sacralidade daquele ritual não era do conhecimento comum, mas o meu pai cedo me explicou que era projectada naquela expressão comum " o bode expiatório disto ou daquilo... ". Porque esta expressão, e deixem que diga que já havia governos ( era o tempo do Salazar ) que expiavam culpas alheias, refletia a fuga dos judeus do Egipto a caminho de Israel e o hábito de durante a fuga os judeus matarem bodes, assim ofertados a Deus, pela expiação das suas culpas .
Nessa altura, o primeiro-ministro chamava-se Presidente de Conselho de Ministros, e o bode era mesmo EXPIATÓRIO, e não como agora, caso ainda se oferendassem bodes, seria ESPIATÓRIO a olhar às escutas que fazem ao Sócrates.
Mas enfim, em qualquer caso, sempre regado o cabrito em bom branco do Douro antes do forno, regalavam-se os supra-citados manducantes do mesmo, com tinto escolhido pelo meu pai, numa sala bem amesoada que a minha mãe povoava de flores da primavera a que ela chamava flores do jardim, senhor Bispo, não acha lindas ?. E o senhor Bispo achava, pois claro!
Era uma Páscoa que durava um tempo eterno, todo o tempo do mundo cristão, exactamente aqueles três dias, de sexta-feira santa ao domingo de páscoa em que não se passa nada ( Cristo é morto sexta e só ressuscita domingo ) mas para nós cristãos se passa tudo.
E contavam-se anedotas, e o senhor Bispo, sem largar dos lábios o sacrifício do anho, lá arranjava tempo para ir contando algumas.Um exemplo:
" Um filho pergunta ao pai judeu:
-Pai, o que é a ética?
O pai, repito comerciante judeu, responde:
- A ética é o seguinte: imagina que entra uma cliente na loja, compra um saia pelissada que custa cento e dez escudos, engana-se e dá-me uma de cem e uma de vinte e vai-se embora. A ética é: conto ao meu sócio ou não ?".
E a propósito, delenda Madeira e China est!
E a propósito, delenda Madeira e China est!
Que lindo Zé Carlos!.... quase pictórico nos pormenores... Vale sempre a pena tirar partido do que, com tanta dignidade, imprimes às tuas vivências "afinal temos vida e não idade" por esse facto, assiste-nos também autoridade para acrescentar pormenores à história, neste caso concreto, da cidade do Porto!
ResponderEliminarBjs é sempre um prazer e uma surpresa acompanhar os textos do teu blog. Elisete
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