É obvio que isto só foi possível porque a total mercantilização da arte o permitiu num quadro geral de Especulação da Vida que tudo varreu e, como já disse aqui, vai continuar a varrer até que o povo se canse e perceba que só se pode viver trabalhando, excepto quando as instituições estatais permitem o chico-espertismo.
Tudo isto me dá saudades doutros tempos. Tempos em que a arte e o seu pequeno mercado circulavam naturalmente. Na "finesse" de quem amava e não usava arte como pastilha elástica para o coração . Havia muita gente assim, como os Guggenheim, que sempre se dedicou ao mecenato artístico - às artes.
Peggy Guggenheim que ficou milionária por conta da tragédia do Titanic em que morreu o pai, ficou assim livre para ser patrona das artes.
Um dia, Peggy, em 1961 soube que um quadro, "LE BATEAU " de Matisse, esteve exposto no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque durante quarenta e sete dias sem que ninguém reparasse que estava exposto de cabeça para baixo. 120 mil pessoas tinham passado diante do quadro quando o equívoco foi descoberto. Comentário da Peggy: -" Quem passa a vida a ouvir os comentários mais parvos de todos são, certamente, os quadros dum museu!".
Ela também disse sobre pintura :-"Se mais de 10% das pessoas gostarem de um quadro ele deveria ser queimado. Provavelmente não presta!".
Conversando com Picasso sobre falsificação de quadros assunto que a interessava porque tinha centenas a necessitarem de autentificação, Peggy perguntou-lhe como é que ele se lembrava daqueles que eram dele, de facto, tendo ele pintado milhares. Resposta de Picasso:-" Se gosto do quadro digo que é meu, se não gosto digo que é falso".
Picasso era muito conhecido pelo seu sarcasmo. Um dia estava a mostrar o retrato duma mulher ao respectivo marido quando este exclama:
Tudo isto se passa no espaço temporal mercantilizado. É verdade que em plena Renascença muitos pintores que até aí só tinham a Igreja como clientes, quando passou a ser moda a burguesia endinheirada "exibir e o seu Audi topo-de-gama da época que era o retrato da mulher e o seu próprio, passaram, tantas eram as encomendas, a chamar "aprendizes" às dezenas que eram quem de facto fazia a maioria da pintura.É por isso que falamos dum quadro "da escola de " Velasquez, Murillo ou Rembrandt. Na verdade esse quadro terá sido feito por muitos para proveito dum só. Mas com o tempo regressamos ao romantismo do pintor de mansarda no Quartier Latin que perdura até meados do século passado. E isto lembra-me o drama de De Chirico na velhice quando se apercebeu que os seus quadros não se vendiam ao contrário do que acontecia com os que ele pintara nos anos vinte. Então começou a falsificar-se a si mesmo!
Esta como que falsificação da realidade, está bem exposta nos surrealistas como num dos discípulos de Giorgio de Chirico, o belga valão René Magritte de que acaba de ser inaugurado o respectivo museu em Bruxelas. Um dia em 1929 Magritte pintou um cachimbo e escreveu por baixo na tela :"Ceci n'est pas une pipe " (isto não é um cachimbo), quadro que repetiu em 1952 com outra frase :"Ceci continue de ne pas être une pipe" ( isto continua a não ser um cachimbo). Magritte rapidamente foi considerado um louco, mas foi muito mais tarde que se explicou:" Como as pessoas me criticaram pelo famoso cachimbo! E, no entanto como poderiam enchê-lo de tabaco?; De forma alguma; é só uma representação, não será? Por isso, se tivesse escrito no meu quadro "isto é um cachimbo", estaria a mentir".
Tudo isto mostra como é difícil classificar a pintura. Mas, por mim, tenho duas regras : nunca comprar um quadro antes de o "namorar" durante meses para ter a certeza de que aquela paixão não me vai cansar o resto da vida; e depois tentar entender se o quadro obedeçe a uma lógica apolínea que é sempre condição do Belo, ou se ao contrário obedece a uma lógica dionísica o deus da bebedeira, geralmente conotado com o Feio. Então é tudo uma questão de deuses, nunca de demónios, mesmo que marchands.
Eu que sou apreciador de pintura recordo com saudade que, no Porto, há trinta anos, nenhuma Nasoni era possível, nenhum Cabecinha teria lugar - apesar de eu achar, como psiquiatra que se fartou de fazer testes de inteligência a centenas de pessoas, que o Cabecinha não ocupa lugar.
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